Adriana Maria Nagalli

Experiências emocionais se dão todo tempo e as mais dolorosas geralmente estão relacionadas à perda de alguém que amamos, pelo desmoronamento de um ideal, pela vergonha e culpa pela destruição da própria humanidade e da do outro.

O sofrimento das protagonistas, para mim não há coadjuvantes, é fruto de   verdadeiros desastres que atingem a alma, que são extremamente dolorosos e desgastam o espírito humano.

Porém, de repente, o acaso promove o encontro que gera uma oportunidade para que mesmo sem um projeto de vida para ambas, encontrem algo. O que? A verdade da própria existência?

Dores transbordam:


Jenny não quer a imitação ou a submissão e  carrega um  terror ao contato, proveniente de muitas violências que cometeram com sua integridade física e mental.

Traude se ocupa em repetir que não se interessa por Jenny e sim pela música. Isso, penso, para manter a todo custo o não envolvimento, uma maneira de evadir-se da dor. Sua jura de amor único e eterno por seu amor -Hanna- que foi assassinada pelos Nazistas (por ser comunista), imprimi nela um componente culposo que também a mantém prisioneira no espaço e no tempo.

Morte em vida.

Jenny e Traude:

O instrumento que possibilita o ato de compreensão é a experiência de similaridade, ou seja, uma experiência onde um está em sintonia com o outro.

Para isso necessariamente a diferença se faz presente, porém, algo similar permite que ocorra uma centelha de conexão. Para compreender o sentimento do outro, busco um paralelo dentro da minha própria experiência. No momento da compreensão, eu e o outro somos um, pela união obtida, pela reciprocidade da experiência e isso pode ser captado inconscientemente, são vozes silenciosas, que captamos quando estamos privados dos elementos externos que podem nos distrair.

Esses elementos externos, penso que tem relação com o que São João da Cruz escreveu em 1542, quando se encontrava preso por buscar a reforma na Ordem Carmelita. Ele foi um menino que nasceu muito pobre, crescendo misturado aos rostos magros e aos corpos frágeis de outros meninos que brincavam nas ruas da Espanha e alçou voo em si mesmo. Torturado, preso e debilitado, lembra a personagem Jenny, mas encontrou sua liberdade no vazio dos elementos externos:

“Para vir a saborear Tudo- não queiras ter gosto em Nada

Para vir a possuir Tudo- não queiras saber algo em Nada

Para vir a possuir Tudo- não queiras possuir algo em Nada

 

E quando venhas de todo a ter – há de tê-lo sem nada querer

Nesta desnudez encontra o espírito, o seu descanso,

Pois nada cobiçando, nada o impele para cima e nada o oprime para baixo

Porque está no Centro de sua humildade”

                                            São João da Cruz

A perda e o trauma podem levar a uma união solidaria através de uma ligação que se dá pela escuta das vozes pré-natais e primitivas.

Numa fagulha momentânea, tendo o piano (música) como objeto de ligação a experiência de Traude e de Jenny se deu em meio à intensidade conjuntas.

MÚSICA

Traude, sofrida e aprisionada pela dor, vendo que Jenny foi maltratada pela vida, recebe essa história calorosamente devido à sintonia, à similaridade e às experiências desumanizantes que viveu no regime hitlerista, permanecendo naquele lugar de dor e castigo.

Considero então que ambas, presas por questões diferentes, puderam criar um acesso uma à outra. Esse acesso à experiência profunda requer suportar o choque com o trauma do outro que destrava a barreira de concreto que as protegiam contra a entrada das emoções.

A experiência com o outro tem essa força em si.

 

Reparação e restauração

Como se abrir para a humanidade compartilhada e renunciar a um pertencimento superficial em favor de restaurar e reparar nossos objetos internos imersos numa profunda dor?

Pertencer é uma necessidade humana básica, principalmente pertencer a si mesmo, apaziguando os terrores internos.

Traude busca desesperadamente pelo talento de Jenny, que um dia viu em Hanna. Precisa ver o sucesso de Jenny como se ao ouvi-la adormecesse num sono- sonho profundo com Hanna, que agora tem a chance de realizar.

Melanie Klein acreditou que os seres humanos experimentam seu mundo desde a mais tenra infância porque para ela os bebês já nascem com alma.

Buscamos, a partir daí e na vida toda, palavras que correspondam às imagens que criamos tão precocemente e que correspondam também ao nosso espírito criativo interno que está em sintonia com essas emoções.

A música, para quem não pode falar ou não consegue falar e não encontra palavras é a única oportunidade possível.

Um artista fala através de sua arte.

Traude e Jenny falavam de sua dor através da música. A dor pela morte de seus amados (bebê de Jenny e Hanna), não foi reconhecida por ninguém.

Essas mortes não foram compartilhadas, elaboradas e reconhecidas como importantes. O luto é melhor elaborado na compaixão, porém, elas sofreram sozinhas esse desastre.

O luto nos coloca diretamente em contato com o pavor ao desconhecido, a realidade da incompletude, o vazio profundamente doloroso, porém, se alguém puder nos acompanhar, passamos por essa encruzilhada.

E quando nos apropriamos disso, da inevitável solidão, quando damos atenção a isso, as ligações podem deixar de ser de superfície para superfície e passam a ser de interior para interior e novas emoções são criadas.

E quem sabe podemos aprender com elas.

Para Jenny, a música é explosão, improvisação, swing e ritmos não lineares. Expressa sua raiva, fúria, revolta, transgressão, força e existência.

Um potencial criativo, ou como tenho sonhado, uma espécie de pré-concepção estética em Jenny, passa a ser banhada por algo que pode promover uma pequena realização de suas dotações. Sendo ela mesma.

Enquanto a fúria acompanha Jenny, para que ela sobreviva, Traude mantém a formalidade e distância ao pedir a reverencia para uma criança.

Ambas viveram a experiência de serem descartadas, jogadas de seu aquário janela abaixo (cena do filme), envoltas com enforcamentos e morte.

Há uma comunicação entre as partes de dentro de Jenny e de Traude, a relação interna de uma com a outra é o que rega as sementes em cada uma porque ao longo do filme percebemos em ambas que partes não desenvolvidas, sofridas, partes internas estão se comunicando.

Porém, antes disso, desconectadas de outros fatores da personalidade de ambas viviam como um relógio quebrado em pedaços na bancada do relojoeiro, mas quando cada parte é montada na relação correta com as outras, cada qual tem sua função. As partes estão integradas.

Os dados brutos das duas aguardam por uma transformação e um período de intensa turbulência se deu para que alguns elementos inertes ou mortos, se tornassem sua própria subjetividade.

Subjetivo é o Eu em Mim. O eu que foi comunicado a si mesmo.

O auge do desenvolvimento humano é alcançado quando a subjetividade do indivíduo orienta suas percepções.

Expressar a dor faz derramar, internamente, alguma luz.

Uma luz em uma criança interna que poderá ser nutrida por sua própria criatividade. Vinculando-se com amor e ódio, de um beijo pueril ao soco, demonstra o  grito de um coração que não suporta mais a dor. Ação.

 

Dor e turbulência na clínica psicanalítica:

Dr Cecil Rezze, em seu livro “Psicanálise- De Bion ao Prazer Autêntico”, nos oferece importantes reflexões. Sua generosidade ajudou-me nas conclusões a seguir. Algo mais aprofundado verão no livro.

“E o que é a psicanalise senão a oportunidade para que nasça o que nunca nasceu, que se crie o que nunca foi criado ou que surja algo do cliente que possa lhe permitir ter prazer ou satisfação na existência.”(Rezze, 2014)

Se os analisandos também vêm à procura de que suas reais qualidades e recursos sejam desenvolvidos, será que o analista desenvolveu seus recursos para conviver dentro da atividade criativa do cliente?

Bion, em Domesticando pensamentos selvagens, denomina as emoções selvagens como uma força animal a ser domada e as compara com a de um tigre. Um risco factual de se enfrentar um pensamento selvagem equivale a enfrentar um tigre. Há algo de selvagem no animal humano que pode colocar nossa vida em risco. Ele considera que há uma situação igualmente perigosa que é lidar com a alma, com o espírito e com a mente, quando as emoções são selvagens, porém destaca a importância do pensamento selvagem, possivelmente como fonte original da criatividade. Assim, o autêntico pode ser experimentado.

Caso clínico publicado

Resumo:

Após uma sessão participativa e colaborativa, o analisando inicia a sessão num clima de bem-estar e conforto.

São feitos movimentos e afetos que sugeriam uma aproximação bastante amorosa.

O analista fala desse clima amoroso e o analisando pega uma manta que o analista deixa a disposição dos analisandos. O analista nota que a manta cobre os sapatos do analisando, o que lhe causa estranheza, mas permanece em silêncio.

O clima se mante leve e o analista decide fazer um comentário sobre o analisando aceitar a manta e poder cobrir-se. Em seguida, o clima emocional muda drasticamente e o analisando diz que o cheiro daquela manta é muito ruim, que estava com cheiro de merda. A violência e o tom vão aumentando até que o analisando diz que o analista quer torná-lo uma merda.

Fica enfurecido, diz que o analista quer torná-lo uma merda, levanta e sai.

A ação tornou-se necessária.

A experiência faz o analista refletir que o analisando captou alguma idiossincrasia na qual se apoia para fazer a viragem de sentimentos. Que se o analista suportar a intensidade da convivência, essa pessoa poderá iluminar aspectos do analista a que o analisando tem acesso e ele não. E nele também.

O analista diz que certamente a vivência foi como um raio que tudo ilumina numa noite escura.

A questão é ver na violência uma experiência de intensa dor.

Adriana Maria Nagalli de Oliveira

Psicanalista, Membro Efetivo da SBPSP e do Grupo de Estudo de Campinas (GEP).

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