Filme: Quadro Minutos

Adriana Maria Nagalli

Experiências emocionais se dão todo tempo e as mais dolorosas geralmente estão relacionadas à perda de alguém que amamos, pelo desmoronamento de um ideal, pela vergonha e culpa pela destruição da própria humanidade e da do outro.

O sofrimento das protagonistas, para mim não há coadjuvantes, é fruto de   verdadeiros desastres que atingem a alma, que são extremamente dolorosos e desgastam o espírito humano.

Porém, de repente, o acaso promove o encontro que gera uma oportunidade para que mesmo sem um projeto de vida para ambas, encontrem algo. O que? A verdade da própria existência?

Dores transbordam:


Jenny não quer a imitação ou a submissão e  carrega um  terror ao contato, proveniente de muitas violências que cometeram com sua integridade física e mental.

Traude se ocupa em repetir que não se interessa por Jenny e sim pela música. Isso, penso, para manter a todo custo o não envolvimento, uma maneira de evadir-se da dor. Sua jura de amor único e eterno por seu amor -Hanna- que foi assassinada pelos Nazistas (por ser comunista), imprimi nela um componente culposo que também a mantém prisioneira no espaço e no tempo.

Morte em vida.

Jenny e Traude:

O instrumento que possibilita o ato de compreensão é a experiência de similaridade, ou seja, uma experiência onde um está em sintonia com o outro.

Para isso necessariamente a diferença se faz presente, porém, algo similar permite que ocorra uma centelha de conexão. Para compreender o sentimento do outro, busco um paralelo dentro da minha própria experiência. No momento da compreensão, eu e o outro somos um, pela união obtida, pela reciprocidade da experiência e isso pode ser captado inconscientemente, são vozes silenciosas, que captamos quando estamos privados dos elementos externos que podem nos distrair.

Esses elementos externos, penso que tem relação com o que São João da Cruz escreveu em 1542, quando se encontrava preso por buscar a reforma na Ordem Carmelita. Ele foi um menino que nasceu muito pobre, crescendo misturado aos rostos magros e aos corpos frágeis de outros meninos que brincavam nas ruas da Espanha e alçou voo em si mesmo. Torturado, preso e debilitado, lembra a personagem Jenny, mas encontrou sua liberdade no vazio dos elementos externos:

“Para vir a saborear Tudo- não queiras ter gosto em Nada

Para vir a possuir Tudo- não queiras saber algo em Nada

Para vir a possuir Tudo- não queiras possuir algo em Nada

 

E quando venhas de todo a ter – há de tê-lo sem nada querer

Nesta desnudez encontra o espírito, o seu descanso,

Pois nada cobiçando, nada o impele para cima e nada o oprime para baixo

Porque está no Centro de sua humildade”

                                            São João da Cruz

A perda e o trauma podem levar a uma união solidaria através de uma ligação que se dá pela escuta das vozes pré-natais e primitivas.

Numa fagulha momentânea, tendo o piano (música) como objeto de ligação a experiência de Traude e de Jenny se deu em meio à intensidade conjuntas.

MÚSICA

Traude, sofrida e aprisionada pela dor, vendo que Jenny foi maltratada pela vida, recebe essa história calorosamente devido à sintonia, à similaridade e às experiências desumanizantes que viveu no regime hitlerista, permanecendo naquele lugar de dor e castigo.

Considero então que ambas, presas por questões diferentes, puderam criar um acesso uma à outra. Esse acesso à experiência profunda requer suportar o choque com o trauma do outro que destrava a barreira de concreto que as protegiam contra a entrada das emoções.

A experiência com o outro tem essa força em si.

 

Reparação e restauração

Como se abrir para a humanidade compartilhada e renunciar a um pertencimento superficial em favor de restaurar e reparar nossos objetos internos imersos numa profunda dor?

Pertencer é uma necessidade humana básica, principalmente pertencer a si mesmo, apaziguando os terrores internos.

Traude busca desesperadamente pelo talento de Jenny, que um dia viu em Hanna. Precisa ver o sucesso de Jenny como se ao ouvi-la adormecesse num sono- sonho profundo com Hanna, que agora tem a chance de realizar.

Melanie Klein acreditou que os seres humanos experimentam seu mundo desde a mais tenra infância porque para ela os bebês já nascem com alma.

Buscamos, a partir daí e na vida toda, palavras que correspondam às imagens que criamos tão precocemente e que correspondam também ao nosso espírito criativo interno que está em sintonia com essas emoções.

A música, para quem não pode falar ou não consegue falar e não encontra palavras é a única oportunidade possível.

Um artista fala através de sua arte.

Traude e Jenny falavam de sua dor através da música. A dor pela morte de seus amados (bebê de Jenny e Hanna), não foi reconhecida por ninguém.

Essas mortes não foram compartilhadas, elaboradas e reconhecidas como importantes. O luto é melhor elaborado na compaixão, porém, elas sofreram sozinhas esse desastre.

O luto nos coloca diretamente em contato com o pavor ao desconhecido, a realidade da incompletude, o vazio profundamente doloroso, porém, se alguém puder nos acompanhar, passamos por essa encruzilhada.

E quando nos apropriamos disso, da inevitável solidão, quando damos atenção a isso, as ligações podem deixar de ser de superfície para superfície e passam a ser de interior para interior e novas emoções são criadas.

E quem sabe podemos aprender com elas.

Para Jenny, a música é explosão, improvisação, swing e ritmos não lineares. Expressa sua raiva, fúria, revolta, transgressão, força e existência.

Um potencial criativo, ou como tenho sonhado, uma espécie de pré-concepção estética em Jenny, passa a ser banhada por algo que pode promover uma pequena realização de suas dotações. Sendo ela mesma.

Enquanto a fúria acompanha Jenny, para que ela sobreviva, Traude mantém a formalidade e distância ao pedir a reverencia para uma criança.

Ambas viveram a experiência de serem descartadas, jogadas de seu aquário janela abaixo (cena do filme), envoltas com enforcamentos e morte.

Há uma comunicação entre as partes de dentro de Jenny e de Traude, a relação interna de uma com a outra é o que rega as sementes em cada uma porque ao longo do filme percebemos em ambas que partes não desenvolvidas, sofridas, partes internas estão se comunicando.

Porém, antes disso, desconectadas de outros fatores da personalidade de ambas viviam como um relógio quebrado em pedaços na bancada do relojoeiro, mas quando cada parte é montada na relação correta com as outras, cada qual tem sua função. As partes estão integradas.

Os dados brutos das duas aguardam por uma transformação e um período de intensa turbulência se deu para que alguns elementos inertes ou mortos, se tornassem sua própria subjetividade.

Subjetivo é o Eu em Mim. O eu que foi comunicado a si mesmo.

O auge do desenvolvimento humano é alcançado quando a subjetividade do indivíduo orienta suas percepções.

Expressar a dor faz derramar, internamente, alguma luz.

Uma luz em uma criança interna que poderá ser nutrida por sua própria criatividade. Vinculando-se com amor e ódio, de um beijo pueril ao soco, demonstra o  grito de um coração que não suporta mais a dor. Ação.

 

Dor e turbulência na clínica psicanalítica:

Dr Cecil Rezze, em seu livro “Psicanálise- De Bion ao Prazer Autêntico”, nos oferece importantes reflexões. Sua generosidade ajudou-me nas conclusões a seguir. Algo mais aprofundado verão no livro.

“E o que é a psicanalise senão a oportunidade para que nasça o que nunca nasceu, que se crie o que nunca foi criado ou que surja algo do cliente que possa lhe permitir ter prazer ou satisfação na existência.”(Rezze, 2014)

Se os analisandos também vêm à procura de que suas reais qualidades e recursos sejam desenvolvidos, será que o analista desenvolveu seus recursos para conviver dentro da atividade criativa do cliente?

Bion, em Domesticando pensamentos selvagens, denomina as emoções selvagens como uma força animal a ser domada e as compara com a de um tigre. Um risco factual de se enfrentar um pensamento selvagem equivale a enfrentar um tigre. Há algo de selvagem no animal humano que pode colocar nossa vida em risco. Ele considera que há uma situação igualmente perigosa que é lidar com a alma, com o espírito e com a mente, quando as emoções são selvagens, porém destaca a importância do pensamento selvagem, possivelmente como fonte original da criatividade. Assim, o autêntico pode ser experimentado.

Caso clínico publicado

Resumo:

Após uma sessão participativa e colaborativa, o analisando inicia a sessão num clima de bem-estar e conforto.

São feitos movimentos e afetos que sugeriam uma aproximação bastante amorosa.

O analista fala desse clima amoroso e o analisando pega uma manta que o analista deixa a disposição dos analisandos. O analista nota que a manta cobre os sapatos do analisando, o que lhe causa estranheza, mas permanece em silêncio.

O clima se mante leve e o analista decide fazer um comentário sobre o analisando aceitar a manta e poder cobrir-se. Em seguida, o clima emocional muda drasticamente e o analisando diz que o cheiro daquela manta é muito ruim, que estava com cheiro de merda. A violência e o tom vão aumentando até que o analisando diz que o analista quer torná-lo uma merda.

Fica enfurecido, diz que o analista quer torná-lo uma merda, levanta e sai.

A ação tornou-se necessária.

A experiência faz o analista refletir que o analisando captou alguma idiossincrasia na qual se apoia para fazer a viragem de sentimentos. Que se o analista suportar a intensidade da convivência, essa pessoa poderá iluminar aspectos do analista a que o analisando tem acesso e ele não. E nele também.

O analista diz que certamente a vivência foi como um raio que tudo ilumina numa noite escura.

A questão é ver na violência uma experiência de intensa dor.

Adriana Maria Nagalli de Oliveira

Psicanalista, Membro Efetivo da SBPSP e do Grupo de Estudo de Campinas (GEP).

Como trabalha o Analista na Contemporaneidade?

Cibele M. M. Di Battista Brandão*

O objetivo na análise, atualmente vai muito além da resolução de conflitos ou da diminuição da sintomatologia. Isso é importante, mas em primeiro lugar o que é trabalhado, é desenvolver o sentir-se vivo, diminuir a desvitalização que ronda os dias dos pacientes. A tentativa é desenvolver essa capacidade de sentir-se vivo que é uma experiência superior e prioritária e deve ser considerada como um aspecto da experiência analítica em si mesma.

Atualmente sobre qualquer coisa que iremos falar temos que citar a total mudança que em tudo se fez em função da pandemia. No campo da Psicanálise não é diferente. Praticamente de um dia para o outro, tivemos que mudar nossa prática para continuarmos respondendo às demandas que sempre tivemos e que agora com o advento de toda a ameaça desencadeada pelo perigo de contágio da Covid-19 quantas coisas passaram a se somar as já muitas tarefas existentes! Isso sem contar a grande demanda que agora existe em função do aparecimento de muitas situações que solicitam a presença de um analista. Tanto de pessoas que estavam assustadas, inseguras e ameaçadas, como de pessoas que passaram a adoecer, apresentar sinais psicopatológicos e a urgência de serem atendidas se fez necessária. Tornou-se lugar comum os colegas dizerem: – Mesmo com o isolamento, nunca trabalhei tanto em minha vida. Somado a isso, a necessidade de rapidamente aprender dominar as áreas de informática, para dar aulas, fazer reuniões, dar palestras e naturalmente também atendermos nossos pacientes primordialmente on-line. Passamos viver uma outra realidade. Melhor? Pior? Não sabemos. É diferente. É necessária.

Como trabalha o psicanalista na contemporaneidade? Percebo que para falar sobre essa questão que é muito ampla devo escolher um aspecto. Por quê? A atividade e inserção da Psicanálise hoje é muito ampla – Na Educação, na Saúde, na Vida Comunitária. Escolho falar de um consultório de Psicanálise onde são atendidas pessoas que vêm movidas por uma angústia e sofrimento emocional intenso.

Uma pessoa consulta um psicanalista porque está sofrendo. Emocionalmente, sem saber ela tornou-se incapaz de sonhar. À medida que é incapaz de sonhar sua experiência emocional ela é incapaz de mudar, ou de crescer ou torna-se diferente de quem ela tem sido.

A pergunta que pode ser feita em qualquer idade –

– O que você quer ser quando crescer? Traz a ideia de sonho, de projeto de vida. E ela pode ser feita para pessoas a qualquer momento. Pode ser um aspecto dentro da análise em que o analista tenta colocar essa pessoa em contato com seus sonhos novamente.

A pergunta é talvez a mais importante que qualquer um de nós pode fazer ao longo da vida, isto é, desde muito cedo, até o momento antes de morrer. Quem gostaríamos de nos tornar?

O analista pode trabalhar com seu paciente fazendo com que ele volte a sentir entusiasmo para se tornar a pessoa que ele havia sonhado ser.

Que tipo de pessoa gostaríamos de ser? De que maneiras não somos quem somos?

O que nos impede de sermos mais como a pessoa que gostaríamos de ser? O que poderíamos fazer para nos tornarmos mais como as pessoas que sentimos ter potencial e a responsabilidade de ser? São essas as perguntas que trazem a maioria dos pacientes às terapias e as análises embora raramente se deem conta disso, estando mais preocupados em encontrar algum alívio para os seus sintomas. Ás vezes o objetivo do tratamento é conduzir o paciente de um estado em que não é capaz de formular essas perguntas para outro no qual seja capaz de fazê-lo. Muitas vezes no início da análise a pessoa venha mesmo mais com sua desilusão diante da vida. E aí ela pode se perguntar o que quero para mim?

Na psicanálise ontológica – onde se busca o ser, o vir a ser, vemos a dupla analítica – Analista e analisando descobrindo sentidos de maneira criativa num processo que nos torne mais vivos. A dupla que é formada entre analista e analisando ajuda a pessoa se reconectar com seus desejos de realização e transformação diante da vida. O que quero ser quando crescer? (Ogden, 2020).

O acontecimento passado, ocorrido, mas não vivenciado, continua a atormentar o paciente até ser vivido no presente (com a mãe/analista). E, no entanto, parece-me que uma das principais, se não a principal motivação para um indivíduo que não tenha vivenciado partes importantes do que aconteceu no início de sua vida, é poder resgatar partes importantes perdidas de si mesmo, para finalmente se completar englobando, tanto quanto for capaz grande parte de sua vida não vivida. Toda pessoa tem necessidade de recuperar o que perdeu de si mesma. Ela quer tornar-se a pessoa que ela é em potencial. Todos nós em diferentes proporções tivemos acontecimentos no início das nossas vidas que envolveram rupturas significativas do vínculo mãe-bebê, aos quais respondemos com organizações defensivas psicóticas. Cada um de nós tem a dolorosa  consciência  de que apesar de podermos parecer psicologicamente saudáveis para os outros (e as vezes para nós mesmos) há formas essenciais em que não somos capazes de estar vivos para nossa experiência, seja a experiência da alegria, ou a capacidade de amar, a capacidade de perdoar alguém (inclusive nós mesmos) ou simplesmente  para se sentir vivo para o mundo ao nosso redor e dentro de nós mesmos – Todos temos nossas próprias áreas especificas de experiência que fomos incapazes de viver e vivemos em busca dessas experiências perdidas que fomos incapazes de viver.

Roosevelt Cassorla diz em uma publicação do último Jornal de Psicanálise:

Ser psicanalista é fascinante. Temos o privilégio de sermos desafiados todo o tempo, a dar sentido a tantas vidas (e também à nossa). E isso nunca termina. (Para quem escolhe esse caminho) que você possa usufruir de tudo o que a formação analítica te oferece. (Cassorla, 2020, p. 133)

Referências:
Cassorla, R. (2020). Meu caro candidato… Jornal de Psicanálise, 53(99), 129-134.
Ogden, T. H. (2016). O medo do colapso e a vida não vivida.  Livro Anual de Psicanálise, 30(1), 77-93.
Ogden, T. H. (2020). Psicanálise ontológica ou “O que você quer ser quando crescer?”. Revista Brasileira de Psicanálise, 54(1), 23-46.

Cibele M. M. Di Battista Brandão

Psicanalista – Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), membro do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região (NPMR) e docente dessas instituições. Secretária Geral do Instituto Durval Marcondes da SBPSP nas gestões 2017-2018 e 2019 – 2020. Atualmente é Presidente do NPMR.

Dia do Psicanalista

Julia G. B. V. Boselli

Sigmund Freud, 190x210 cm, Acrylic On Canvas, 2015-01, Voka

Sigmund Freud, 190×210 cm, Acrylic On Canvas, 2015-01, Voka

Esse mês comemoramos o Dia do Psicanalista. Profissão que escolhi e escolho todos os dias.

Freud tinha como habito escrever após seus atendimentos clínicos, o que, por consequência gerou uma grande obra epistemológica.

 Hoje, inspirada por ele, vou escrever após um dia de atendimentos também. Deixo aqui uma pequena contribuição para não passar em branco essa data. Afinal, de branco e pálido não tem nada essa tal de psicanálise.

Como terapeutas sabemos o nome de quem iremos atender e até mesmo o horário do paciente. Mas, a realidade é que nunca sabemos quem entrará por aquela porta. O inconsciente não segue uma lógica cronológica e organizada.

Abrimos a porta e com nossa atenção flutuante encontramos angustias primitivas. Nos deparamos com aquela criança que o paciente utiliza de várias defesas para esconder. Esconde o desamparo vivenciado concretamente ou simbolicamente no passado e que até hoje ressoa. 

Os sintomas dessas angústias estão aqui, no presente. O desamparo é vivido e atuado pelo próprio paciente, que repete na tentativa de elaborar o conflito. O paciente então trava uma luta (processo de análise) no lugar e horário apropriado para isso, a clínica.

O termo luta não me refiro no sentido de competição ou guerra, e sim, algo trabalhoso que envolve uma relação de intimidade em que o paciente pode recorrer à mente do analista.

Sem as lentes do psicanalista veríamos um adulto deitado no divã relatando seu dia; atrás dele, outro alguém ouvindo e apenas ouvindo. A verdade é que nós terapeutas estamos ali, fazemos parte ativamente da narrativa. Vivenciamos transferência e contratransferência durante toda sessão e usamos de diversas técnicas para maneja-las aproximando cada vez mais o paciente de seu desconhecido (inconsciente). 

O terceiro analítico (termo de Thomas Ogden) que nasce dessa dupla paciente-terapeuta é intenso, colorido, dolorido e até mesmo estético. As cores são tão vivas que frequentemente o psicanalista vive as identificações projetivas do paciente.

 O paciente, mesmo racionalmente entregue ao processo analítico, em sua ambivalência, luta para não ser amparado, pois é o modo que conhece até então. Como bem nos ensina Klein não podemos pensar em nada mais humano do que nossa dificuldade em amparar nossos desejos mais hostis.

Mas afinal porque no dia 6 de maio é comemorado o Dia do Psicanalista?  

Em 6 de maio de 1856 nasce em Freiberg (atual República Tcheca) Sigmund Freud neurologista criador da psicanálise. Peter Gay, seu biógrafo, o descreve como um arqueólogo da mente.

Freud cria o método psicanalítico que consiste em evidenciar significado inconsciente das palavras, ações e produções imaginarias (sonhos, fantasias e delírios) de um sujeito. (Definição de Laplanche e Pontalis)

Então não bastaria estudarmos sobre a psicanálise? Por que precisamos do psicanalista? Em uma das cartas que trocadas com Fliess (colega médico e confidente) Freud afirma: “A verdadeira autoanalise é impossível, do contrário não haveria doença.”

Seria impossível travar uma luta com nós mesmos para quebramos nossas próprias repressões. Quanta vezes nos faltariam coragem de olhar ou confrontar? Tenderíamos ao princípio de nirvana sempre que possível.

E sim, é mais fácil ter coragem se temos o psicanalista preparado para estar nesse caminho tortuoso do desenvolvimento emocional. O terapeuta faz muitos esforços como estudo, supervisão e analise pessoal de alta frequência, para que esse caminho, ainda que em companhia, seja individual e próprio do sujeito. Sem gerar dependência ou estar munido de julgamentos morais.

“Um dia, quando olhares para trásverás que os dias mais belos foram aqueles em que lutaste.” Freud

Feliz dia do Psicanalista aos terapeutas, mestres, supervisores e colegas.

Julia G. B. V. Boselli CRP:06/136769

Psicóloga clínica; Membro filiado Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo -SBPSP; Membro filiado ao NPMR – Núcleo de Psicanálise de Marília e Região; Graduada em Psicologia pela Universidade de Marília (SP) – UNIMAR;  Especialista em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica pela Faculdade de Medicina de Marília – FAMEMA.
Realizou Curso de Aprimoramento em Psicoterapia Psicanalítica pelo Núcleo de Psicanálise de Marília e Região.
Auxiliar Comissão de Cultura do NPMR;
Auxiliar Comissão de Avaliação de novos agregados NPMR;
Auxiliar Comissão do Serviço de Orientação e Encaminhamento (SOE) NPMR.

Passado, presente e futuro

Alfredo Menotti Colucci*

A Psicanálise implantou-se formalmente em Marília e região no final da década de 1960, com atividades que se desenvolviam pelo Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Marília – FAMEMA, sob minha coordenação, com uma forte influência psicanalítica trazida da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP, propiciando o desenvolvimento de trabalhos, pesquisa e estudo da Psicanálise. Naquela época, Marília era um centro universitário com a presença de professores de reconhecimento internacional ligados à FAMEMA como a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília – USP.

O currículo da FAMEMA foi divulgado em Congressos encontrando ressonância nos órgãos governamentais. Foi quando, no início de 1973, foi firmado o Convênio com o Ministério da Saúde com respaldo da Organização Mundial da Saúde, criando-se o Centro Integrado de Saúde Mental de Marília. que integrou a FAMEMA a todos os serviços de saúde mental, tanto municipais e estaduais, como federais.

Esse foi um programa que repercutiu de forma positiva na academia brasileira e a FAMEMA foi construída sobre esse alicerce. Penso que essas origens a fazem ser, se não a única, uma das principais no cenário nacional pela dimensão da saúde integral do HOMEM.

Alguns anos antes, em 1968, iniciei minha formação psicanalítica e encontrei na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo uma entidade comprometida com a difusão da Psicanálise, herança de Durval Marcondes e Virgínia Bicudo. Incorpora-se nela o espírito expansionista dos bandeirantes, e o pioneirismo em aderir ao criativo, o que resulta na pujança de seu crescimento. A inclusão da análise concentrada foi decisiva para que a Psicanálise se ampliasse para o interior. Entretanto, em 1982, a IPA recomenda o impedimento de se iniciar análises concentradas, o que exigiu uma mobilização tanto da ABP (atual FEBRAPSI) como da SBPSP, e iniciaram-se jornadas científicas para permitir que argumentos consistentes pudessem ir contrapondo-se aos da IPA. Cito alguns dos autores desses trabalhos: Alfredo Menotti Colucci, Deodato Curvo de Azambuja, João Carlos Braga, Luiz Carlos Menezes, Marcio Giovanetti, Roosevelt Cassorla e outros, que foram decisivos nesse processo. Além da participação de Plinio Montagna junto à IPA para a aceitação da análise concentrada, considerando que, sem esse modelo, seria impossível o desenvolvimento da Psicanálise no Brasil.

    

Em 1992, é criada na SBPSP a Comissão do Interior sob a coordenação de Odilon Franco Filho. Durante oito anos, até 2000, quando pode ser instalada a Secretaria do Interior, um trabalho de base foi realizado por mim, José Pavan, Regina Colucci, Maria Auxiliadora Ribeiro, Cibele Brandão, Miguel Marques, Tais Marques e Celina de Melo e, reunindo-nos na Clínica Guanas, demos prosseguimento à nossa formação psicanalítica na SBPSP e trabalhamos na difusão da Psicanálise. Tal era a repercussão, que a clínica era chamada de “Sergipinha”, por propiciar cursos e seminários clínicos para muitas cidades da região, uma alusão à Rua Sergipe, então sede da SBPSP.

A produção de trabalhos psicanalíticos também foi marcante, o que estimulou o lançamento de uma revista que, por seu conteúdo psicanalítico, recebeu o nome de Revista do Interior com duplo significado: os analistas residentes no interior e o tema do interior do Homem. A revista foi, na realidade, uma nova edição de uma revista produzida na década de 1970.

A Clínica Guanas foi insuficiente para suportar o crescimento do grupo, mas como existia nela um Centro de Estudos Psicanalíticos, foi possível reproduzi-lo na instalação do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região (NPMR). Na época, esse núcleo e o de Curitiba foram oficializados pela FEBRAPSI, estimulando a instalação dos Núcleos pela Secretaria do Interior na gestão de Márcio Giovanetti (2000), sob minha coordenação. Logo, 16 Núcleos da Secretaria do Interior estavam ativos. Nessa época, tal qual um caixeiro-viajante, foi possível levar a Psicanálise para cidades do estado de São Paulo, bem como outros estados do Brasil. Minha participação em duas gestões das diretorias da SBPSP e da FEBRAPSI foram importantes para trazer subsídios para Marília e sempre estimulei a SBPSP a continuar sua vocação bandeirante. 

  

Em final de 1994 instala-se oficialmente o NPMR, o que marca o início das atividades institucionalizadas em Marília e Região. Destaco dois eventos: I Encontro do NPMR, em 1995, e o II Encontro do NPMR, em 1997 – Entrelinhas. Dessa forma, construiu-se o berço para a Diretoria Regional na SBPSP, que continuou estimulando novos Núcleos. Essa história pode ser acompanhada no livro “Caminhos cruzados, sonhos compartilhados: Inserção da Psicanálise em Marília e Região” que se encontra no acervo da SBPSP, propiciando investigar os fatores que são necessários, mas não suficientes, para a inserção da Psicanálise em uma região ou mesmo sua difusão e/ou sua divulgação.

Hoje o NPMR, pelo seu crescimento, número de membros e atividades, busca a passagem para Grupo de Estudo ligado à IPA.

Pesquisa em Psicanálise

Com a vinda de Bion na década de 1970, e estimulado por Judith Andreucci, Lygia do Amaral e Frank Phillips, desenvolvi investigações no início das relações mãe-bebê-pai, tendo produzido vários trabalhos, sendo o de maior investimento, o realizado por uma equipe multiprofissional composta por psicanalistas, pediatras, ginecologistas, estatísticos e filósofos, que durou 5 anos na observação de gestações, período perinatal, parto e puerpério de 33 casais grávidos.  Pesquisa subvencionada pela RAB – IPA, aprovada em 23 de junho de 2000.

Uma proposta para o futuro

A pesquisa sobre análise concentrada permitiu que a SBPSP ampliasse sua expansão. Hoje, com a introdução do sistema de cursos, seminários, supervisões e análises on-line, novos estudos precisam ser realizados, pois esta forma de trabalho, embora importante, ainda não apresenta experiências suficientes a respeito de sua repercussão na formação psicanalítica. Uma vez alicerçada, e aperfeiçoando-se esta aquisição, somada à atualização da SBPSP pelo sistema Virgínia, poderia alcançar áreas e ampliar a expansão da Psicanálise na Grande São Paulo e no Estado, continuando a ser norteada pelo espírito bandeirante.

Deixo meu agradecimento a todos que trabalharam nessa empreitada, com destaque aos funcionários da SBPSP.

Crédito: Aleksey Odintsov, Abstract Twisted Waves. 

Alfredo Menotti Colucci

É psicanalista, membro efetivo, docente e ditada da SBPSP e Fundador do Núcleo de Psicanálise de Marilia e Região. 

Missão do Corpo

Victoria R Béjar*

Este título não é meu, ouso pedir licença ao nosso grande poeta Carlos Drummond de Andrade, que o deixou, entre outras poesias, para publicação póstuma: Farwell.

O grande poeta na reta final da vida, reúne de modo mais convincente, suas vivências e percepções corporais e as transforma em poesia. Creio que após os sessenta anos, o corpo volta a se impor de modo cada vez mais evidente. Limitações, inúmeras transformações, dos órgãos, da aparência. O corpo nos remete ao desamparo e necessidade de cuidados quase como quando éramos bebês.

Mas essa descrição caberia num percurso de vida natural e sem intercorrências marcantes. Não é o que vivenciamos há um ano, uma pandemia, o coronavírus. Além de atingir o mundo inteiro, é atemporal. Corpos com qualquer idade são assaltados pelo coronavírus que num afã destrutivo, rapidamente pode destruir qualquer corpo, de toda idade e levá-lo à morte.  Diga-se de passagem, morte difícil, dolorosa, por sufocação, pulmões que se cristalizam e perdem sua condição de expansão! Falência cardiorrespiratória! Mas observamos que a luta pela sobrevivência empreende grandes esforços.  Dias de UTI, tubos na traqueia, veias, bexiga, enormes doses de corticóides, analgésicos, anestésicos, rebaixamento ao nível inconsciente para suportar as dores e os desconfortos, e tentar se salvar da invasão do inimigo cruel.  A enorme destrutividade contida num diâmetro de 40 nanômetros!

Convivemos com psicanalistas relutantes em aceitar que o corpo faz parte de nossa estrutura psíquica.  Embora Freud, em “O ego e o id” de 1924, já apontasse para a existência de um ego corporal. Aprofundou as relações entre as instâncias psíquicas e as profundezas do soma em 1933, na monumental conferência “A dissecção da realidade psíquica.” Segundo Freud, “o id tem em um dos seus extremos as influências somáticas”, e que o ego e o superego, por sua vez, estejam enraizados no Id.  Assim sendo, o aparelho psíquico encontra-se enraizado no soma.

Porém, muitos o admitem como abrigo do funcionamento psíquico arcaico. Provavelmente, a psicanálise infantil foi quem abriu as portas para que o corpo fosse notado, embora não fosse esse seu objetivo. Na década dos anos 1960 em Paris, Pierre Marty e colegas psicanalistas, que atendiam como clínicos em hospitais gerais, observaram em muitos pacientes que apresentavam patologias somáticas, um tipo característico de pensamento e de empobrecimento afetivo, que denominaram pensamento operatório e depressão essencial. Desde aí foi fundada em Paris a atual escola de psicossomática psicanalítica Pierre Marty. O fundamental desta abordagem é considerar corpo e mente unidos, como partes de um mesmo território, ao contrário da teoria cartesiana, que domina o ponto de vista médico e de outras ciências, que considera corpo e mente como dois territórios diferentes que se influenciam.

Para a medicina e outras ciências, o corpo é formado por complexos aparelhos e funcionamentos que sustentam a vida, mas caso sejam danificados, podem levar a graves consequências, até a morte. A partir desse enfoque, as questões psíquicas não são consideradas como possíveis causas de sérias doenças corporais.

Portanto, podemos concluir que é no corpo que os alicerces da vida psíquica se encontram, no qual se assentam as inscrições pré-verbais, formadas pelos estímulos recebidos dos nossos sentidos, principalmente visuais e auditivos. Além desses sentidos temos terminações proprioceptivas distribuídas no maior órgão do corpo humano: a pele que nos envolve.  Tudo que nos atinge deixa impresso sua marca, nos tempos mais iniciais da vida e por que não dizer, até mesmo na vida intrauterina. No desenvolvimento psíquico essas inscrições ou marcas são chamadas representações coisa. Expressam-se como imagens, sons, sem palavras nas fantasias, nos sonhos, nos devaneios. Mas ao receberem um nome se transformarão em representações palavra, que são os elementos utilizados na construção dos pensamentos. Formam as redes representacionais que nos permitem tecer associação de ideias e elaborar pensamentos dos mais simples aos mais complexos.

Outra questão fundamental para a formação do aparelho psíquico  é a relação do bebê com o ambiente, ou melhor dizendo, com a figura materna ou com quem exerça essa função. A pessoa que cuida do bebê influencia seu esperado desenvolvimento psíquico, se puder exercer a “função materna”. A função materna, além de prover a alimentação, funciona como um escudo protetor, protegendo o bebê do grande montante de estímulos internos e externos que o atingem. A função materna digere e organiza os estímulos, para depois devolvê-los ao bebê, que pode então recebê-los e contê-los.

É no corpo a corpo mãe-bebê, nos seus braços, no seu colo, olhos nos olhos, nas carícias, no aconchego, nas palavras sussurradas pela mãe, que o bebê encontra conforto, calma e aconchego repetidos. Esse aspecto da função materna é chamado de libidinização do corpo do bebê, a qual o imanta com alto grau de investimento afetivo materno. A função materna proporciona vários acréscimos ao corpo somático, transformando-o em um corpo com energia vital, a energia pulsional. A vida pulsional é uma mescla ligada de forças de vida e forças de morte, que colabora no percurso pelas diversas etapas do desenvolvimento. Assim, alcança sua subjetividade e consegue galgar o ápice do desenvolvimento, da construção mais sofisticada do ser humano: a vida psíquica.

Nos primórdios da vida, para o bebê, a mãe e ele são uma mesma pessoa, ela faz parte dele, não é outra pessoa, mas ele próprio. O investimento afetivo da mãe no bebê é responsável pela organização das forças internas, dos instintos de vida e de morte que se ligam e são fonte de energia vital. O tolerável jogo presença/ausência materna, lança no bebê os alicerces da capacidade de sonhar, por meio da realização alucinatória do desejo, que cria o peito na mente do bebê enquanto ele não chega. O encontro do peito alucinado com o peito real gera no bebê a fantasia de que o peito é criação dele.   E a constatação de que a mãe é um outro ocorre graças à possibilidade de colocar dentro de si quem se encontrava fora. Poder transferir da realidade externa para a realidade interna a presença materna.

O interessante é pensar que o corpo que nasce somático, regido por aparelhos e funções, nasce carne e sobrevive graças à manutenção saudável de seus complexos funcionamentos. Mas, é graças ao vínculo afetivo com a mãe, que os arcabouços psíquicos se inserem e se enraízam no corpo, constituindo o funcionamento mental arcaico. A construção do aparelho psíquico se dá como uma construção gradual que atravessa etapas cada vez mais elaboradas, apoiada a par e passo com os processos orgânicos, mas que, principalmente, depende do encontro fundamental com o outro.

A presença do outro é essencial durante toda a vida. Por meio de um processo sofisticado e que leva tempo, o bebê consegue pouco a pouco se dar conta que ele e a mãe são diferentes, são duas pessoas. A constituição da subjetividade, do se tornar si mesmo, é impulsionado pelas aquisições advindas do complexo desenvolvimento corporal, mas depende fundamentalmente da saudável estruturação psíquica, dos avatares do encontro com o outro e da firmeza do vínculo afetivo significativo. É impulsionado pelo esforço que as forças de vida derivadas dos instintos e das pulsões lhe impõe. Viver é a regra. Ser impulsionado para estruturas cada vez mais complexas é a norma.

É por isso que o corpo da psicanálise não se trata do corpo somático em si, mas dele deriva, é formado por aquisições afetivas sofisticadas que constroem o aparelho psíquico. Portanto, se trata de algo diferente e mais complexo do que o corpo somático em si mesmo. Vai além da carne. Atinge a alma. É um corpo dotado de emoções, afetos, brilho, de capacidade de pensar, de sonhar, de amar. É um corpo libidinal, narcísico, pulsional. Somos seres humanos que habitamos em nossos próprios corpos e enfrentamos o desafio de viver todas as possibilidades. Seres capazes de transformar as provas, as frustrações e as dores em desafios; embora muitas vezes tropeçamos e caiamos, podemos nos levantar enriquecidos pela experiência. 

Vamos agora nos enebriar na inspiração poética  criada por Carlos Drummond de Andrade sobre o corpo.

Missão do corpo

Claro que o corpo não é feito só para sofrer,
mas para sofrer e gozar.
Na inocência do sofrimento
como na inocência do gozo,

o corpo se realiza, vulnerável
e solene.

Salve, meu corpo, minha estrutura de viver
e de cumprir os ritos do existir!
Amo tuas imperfeições e maravilhas,
amo-as com gratidão, pena e raiva  intercadentes.
Em ti me sinto dividido, campo de batalha
sem vitória para nenhum lado
e sofro e sou feliz
na medida do que acaso me ofereças.

Será mesmo acaso,
será lei divina ou dragonária
que me parte e reparte em pedacinhos?
Meu corpo, minha dor,
meu prazer e transcendência,
és afinal meu ser inteiro e único.

Victoria R Béjar

Dra. Victoria Regina Béjar é médica psiquiatra e psicanalista. Membro efetivo da SBPSP, da IPA e da Associação Brasileira de Psiquiatria. É docente do Instituto Durval Marcondes e coordenadora do grupo de estudos “Expressões corporais da dor psíquica: dor corporal e psicossomática psicanalítica” da SBPSP.  Psicanalista do grupo multidisciplinar de DOR da clínica neurológica do HCFMUSP. Participou do grupo de formação em psicossomática psicanalítica no Instituto Pierre Marty, Paris.  É representante na América Latina do Grupo de Adições da International Psychoanalytical Association (IPA). Reside em Atibaia, onde atua no consultório particular e é assistente na Clínica De Dor de Atibaia. Coordena o grupo de estudos de psicanálise contemporânea de Atibaia e região.

A fecundidade do modelo Kleiniano (1882-1960)

Lídia Queiroz Silva Magnino*

Melanie Klein, uma corajosa clínica sem formação acadêmica, constrói sua obra com poderosa intuição prática trazendo desdobramentos fecundos a teoria e técnica psicanalítica, sem ignorar ou romper com Freud. Abre novos horizontes à psicanálise da criança, da psicose, do autismo, bem como aprofunda a análise de pacientes neuróticos e a analisabilidade de outras estruturas mentais, quando aponta as ansiedades psicóticas. Klein alarga o campo da psicanálise no diálogo com estética, sociologia, filosofia e política. Uma obra aberta e polissêmica.

Sua história de vida foi marcada por muitas perdas e vivências depressivas, como ser uma esposa infeliz e uma mãe deprimida. Analisada por Ferenczi e depois por Abraham, Klein se tornou a primeira mulher presidente da Sociedade de Psicanálise de Londres.

Preocupada com seu filho buscou as fontes da inibição simbólica, assim, descobriu que o parar de brincar é tão importante quanto o brincar. Constatou que a vida psíquica se orienta por afetos e que a ausência é presença de um objeto hostil.

No contato, ao atender crianças pequenas, percebeu que eram capazes de fazer transferência, sendo possível aplicar o método psicanalítico. Klein observou que o bebê é um cientista, um pesquisador nato, que testa suas fantasias inconscientes. Identificou um ego primitivo, um édipo e um superego precoce. Concluiu que falar de fantasia é falar de afeto, a partir disso cria a técnica de análise da criança.

Ela fez da psicanálise uma arte de cuidar da “capacidade de pensar”, destacando o papel central dos afetos e da dor psíquica, sendo a pulsão de morte o agente principal da simbolização. Segundo Klein, existe um pensar com emoções, em que, o afeto é o centro da vida psíquica. O afeto organizador e estruturante, dando significado ao movimento mental. Ela não dissocia o afeto do pensamento. Nós pensamos com símbolos e ele é essência da vida mental, não só representativo. O pensamento oferece uma consciência e organização de como o indivíduo se relaciona com o mundo.

Klein revoluciona a Psicanálise e o modelo de análise infantil, isentando-a de intenção pedagógica e intuindo a contínua atividade de personificação da criança, semelhante às associações livres e à mobilidade da angústia.

Ouvindo as crianças, notou a concretude e a importância dos espaços. Espaços no interior do corpo da mãe e da própria criança. A autora, então, faz uma “geografia da mente”. Um “lugar” como um “teatro da mente” onde existem presenças e acontecem fatos. Toda a vida psíquica se passa neste mundo interno, com objetos bons (gratificadores) e maus (frustradores) em relação, também, com a presença da fantasia inconsciente e das defesas conectadas a ela.

Sendo assim, o brincar da criança é trabalho; é como um fio que possibilita compreender o que se passa na sua mente.  O brincar é semelhante ao sonhar e pensar. É uma narrativa icônica que expressa suas fantasias inconscientes, sua estrutura do ego e suas identificações com os objetos.

Klein observa que a fantasia inconsciente é precoce e expressa pulsões psíquicas. Essas fantasias tem caráter de realidade e onipotência, influenciando as percepções e as relações da criança. Demonstra que o desejo de comer se torna a fantasia de ter incorporado o seio ideal que a nutre. Já o desejo de destruir, se transforma na fantasia de ter destruído o seio e ser perseguido por ele.

Para Klein, o superego é precoce, persecutório e tirânico. Ele não é uma instância monolítica, e sim, composto de uma profusão de objetos internalizados, impregnado de destrutividade e figuras internas cruéis. A criança teme as represálias da mãe contra seu corpo (ansiedades persecutórias entremeadas a sentimento de culpa e depressão). Ela observa sentimento de culpa em crianças pequenas e deduz um édipo precoce (sexto mês).

A criança nasce com um ego lábil e em desenvolvimento, sendo capaz de sentir ansiedade, elaborar mecanismos de defesa e estabelecer reações de objeto. Permeada pelas fantasias inconscientes, agrupa duas organizações psíquicas: a Posição Esquizo-Paranoide (PEP) e a Posição Depressiva (PD), cada uma com um tipo de ansiedade, mecanismos de defesas, relação de objeto e simbolismo. Uma veiculando e a outra como um balé.

Na Posição Esquizoparanoide, a ansiedade é paranoide e os mecanismos de defesa são: a cisão; a identificação projetiva (mecanismo para livrar o ego de angústias, evacuando para fora e para dentro do outro e de si mesmo); idealização e negação. Nessa posição, a relação de objeto é parcial, com imagens cindidas, sendo uma persecutória e outra idealizada. O tipo de simbolismo presente é a equação simbólica. A pessoa é vívida pela experiência, pelo imediato.

A outra organização é a Posição Depressiva em que a ansiedade é depressiva. Além das defesas da PEP, há também a reparação. Nessa posição, a relação de objeto é total, a pessoa é capaz de contextualizar a experiência, de pensar e ter memória. O sujeito é capaz de elaborar lutos e estabelecer bons objetos internos. Uma boa identificação com a mãe é a base para identificações benéficas posteriores e para estabelecer a boa relação entre os genitores. Prevalece o interesse e o amor pelo objeto, garantindo a saúde mental.

Klein dá ênfase na pesquisa do funcionamento pré-verbal e dos estados mentais primitivos onde prevalece a simultaneidade. Constrói um sistema de comunicação específico avaliando os efeitos da cisão e projeção por meio da linguagem. A linguagem é concreta, pictórica, como se fosse um “carnaval” no mundo interno, evocando imagens simples (pai mau, mãe boa), aglomeradas (papai polvo voraz), grotescas (seio dentado, venenoso, explosivo); descrevendo os objetos parciais internalizados, revelando as projeções das tendências sádico-orais sentidas como vivas dentro do corpo do bebê. Por meio de metáforas icônicamente processadas, Klein preenche as lacunas entre a simultaneidade da pré-narrativa (ainda não simbolicamente representada) e os conteúdos do universo pré-verbal (fragmentado e assustador) em potencialmente pensáveis e comunicáveis. Cria a visualização do mundo interno da PEP e PD.

As angústias primitivas, como sadismo, inveja, voracidade e as alterações nos objetos interno e externo, propõem mediação através da interpretação na transferência, abrandando as angústias e reduzindo a distância entre fantasia inconsciente e realidade externa. A interpretação torna presente o mundo interno com as distorções, os ataques, as fantasias corporais mais primitivas, abrandando a angústia de morte subjacente. O analisando se sente compreendido e aliviado.

Sendo assim, Melanie Klein modifica o modelo reconstrutivo histórico Freudiano da transferência para a atualidade, destaca as comunicações transferenciais no aqui e agora. Enfatiza a importância da firmeza do setting para permitir que as fantasias mais primitivas se manifestem através das identificações projetivas influenciando a mente do analista.

O conceito de Identificação Projetiva modifica o conceito de Transferência e Contratransferência. A projeção é dentro do objeto com um afeto. Os objetos dentro da mente oferecem um modelo corporal de funcionamento mental. O analisando evoca a estrutura do analista. A relação analista-analisando é esclarecida pela compreensão das identificações projetivas que enriquece a contratransferência, funcionando como um radar.

 

Lídia Queiroz Silva Magnino

Membro Associado da SBPSP, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Coordenadora e Docente do Curso de Especialização de Teoria Psicanalítica e Docente do Curso de Medicina da Universidade de Uberaba.

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