onvido o leitor a acompanhar-me no relato de investigações que, a meio caminho, se encontraram com o conceito enactment. O início foi a clínica.
Ainda candidato, na década de 1980, atendia K, uma sofrida jovem. Durante as sessões me sentia invadido por queixas e lamentações que, inicialmente, se referiam a sintomas corporais e à busca desesperada de tratamentos médicos, depois substituídos por queixas em relação a pessoas significativas incompreensivas.
Tentava compreender o que havia para além das lamentações, com pobres resultados. Minhas intervenções eram atacadas ou desvitalizadas. Sentiame frente a uma espécie de muro protegido por metralhadoras que me fuzilavam.
Percebia minha impotência e K se queixava dela também. No entanto, havia momentos em que K parecia aproveitar o trabalho analítico.
Imaginava que estava sendo capaz de suportar os ataques e, na medida do possível, transformá-los em pensamento. Acreditava que as dificuldades seriam vencidas, aos poucos, desde que eu não me deixasse destruir.
Numa determinada sessão, K detalhava frustrações e incompreensões, na forma lamentadora habitual. Eu ouvia calmamente (ou assim me parecia) e buscava por onde intervir. A intensidade crescente dos ataques dificultava a manutenção de minha paciência. K mal me ouvia e falava junto comigo, por vezes gritando. Pacientemente eu interrompia minhas intervenções esperando que ela se acalmasse.
Em determinado momento me surpreendi dando um soco no braço da cadeira enquanto interrompia K dizendo-lhe que ela não me escutava e não me deixava falar. Senti-me perplexo e assustado ao ouvir o barulho do soco e a irritação em minha voz.
K assinalou, ironicamente, que eu havia ficado nervoso. Mais controlado lhe disse que sim, ela tinha razão, eu era humano. E acrescentei: “ainda bem que você tem um analista que fica nervoso, e que se não fosse isso eu estaria com medo de você e você não teria analista”. A sessão terminou em seguida, sem condições para conversarmos sobre o que havia ocorrido.
Quando K saiu me senti envergonhado e culpado. Estava certo que minha função analítica havia sido destruída e que havia maltratado K. Receava que ela não mais voltasse. E tratava-se da paciente escolhida para minha primeira supervisão oficial.
Mesmo perturbado pude imaginar o que ocorrera. K havia projetado elementos não pensáveis dentro de mim que, em forma complementar, se “engancharam” a aspectos meus não suficientemente elaborados. Considerava-me responsável pela situação e não tinha clareza sobre os aspectos de minha contratransferência que haviam sido “atuados”. Essa situação seria nomeada, anos após, enactment agudo.
No dia seguinte, me surpreendo com K chegando à sessão. Minha satisfação inicial foi seguida de apreensão. Tinha certeza que K se vingaria. Mas ela estava calma, suas associações eram produtivas, eu me senti analiticamente potente. A sessão foi satisfatória, como há muito não ocorria.
Nas sessões seguintes minha surpresa aumentou. K, emocionada, lembrou-se de situações traumáticas ocorridas durante sua vida, envolvendo separações, abandonos e intrusões. Essas lembranças foram estimuladas pela situação descrita com a qual se articularam. Sua ressignificação somada a construções hipotéticas ampliou a rede simbólica do pensamento.
A surpresa, ainda que agradável, me intrigou. Desde então venho me dedicando a sua compreensão. Parti de conceitos que me pareciam próximos, tais como contratransferência complementar, identificação projetiva massiva, contraidentificação projetiva, atualizações, tela beta e outras formas de comunicação primitiva. O primeiro trabalho, apresentado na sbpsp em 1985, foi publicado 10 anos após (Cassorla, 1995). Outros trabalhos se seguiram (por exemplo, Cassorla, 2001; 2003; 2004; 2005a; 2005b; 2007; 2008a; 2008b; 2008c; 2009a; 2009b; 2012a), onde o leitor poderá acompanhar, em detalhes, os passos da investigação. Eles têm me levado ao estudo do processo de simbolização e suas formas de expressão no campo analítico (Cassorla, 2012b; 2013a; 2013b e textos no prelo).
Revendo a situação fui capaz de perceber que o enactment agudo (o soco na cadeira) se seguiu a um conluio dual de violência e submissão mútuas que havia tomado, antes, o campo analítico. K me atacava e eu me submetia a esses ataques, sem dar-me conta suficiente do fato. Minha paciência parecia masoquista. Por outro lado, eu submetia K à impotência de minha função analítica.
Ambos os membros da dupla analítica se sentiam prolongamento um do outro (Cassorla, 1997). Tempos depois chamaria esse conluio enactment crônico.
Percebi, também, que o enactment agudo indica a liberação do analista do conluio dual. O paciente entra em contato com o fato de que o analista é outra pessoa. A discriminação self/objeto é vivenciada como traumática. Adiante esses aspectos serão estudados em detalhes.
Percebi que fatos próximos já me intrigavam bem antes de defrontar–me com essa situação. Desde o maltrato de equipes de saúde a determinados pacientes, tais como tentadores de suicídio (Cassorla, 1985), até “falhas” do analista quando se engana em relação a horários, esquece de alguma sessão, troca nomes, usa tom de voz sedutor, impaciente, irônico etc. Essas situações se tornavam produtivas quando a dupla as reconhecia e discutia. Uma situação marcante ocorreu antes de tornar-me analista. Um paciente me disse, ao final da sessão, que havia esquecido o cheque e que me pagaria na próxima sessão.
Eu lhe disse que deixasse o cheque na portaria, no mesmo dia, porque eu tinha um pagamento que venceria no dia seguinte. Senti-me constrangido tanto com a cobrança como com a exposição. Na sessão seguinte o paciente me disse que nunca imaginaria que eu precisasse de dinheiro. A partir desse fato pudemos trabalhar sua fantasia que eu era uma espécie de seio inesgotável que estava ali só para satisfazê-lo, sem ter vida própria.
Lembro-me de outra situação, com resultado oposto. Cobrava honorários baixos de uma paciente. Aos poucos percebi que eu fora influenciado por suas lamentações. Ao trabalhar esses fatos, a paciente passou a atrasar o pagamento tentando seduzir-me a reduzir mais os honorários. Após bastante trabalho analítico chegou-se à conclusão que seria melhor interromper a análise até que sua situação melhorasse. Agradeceu-me por minha ajuda e prometeu voltar.
Tempos depois soube que me difamava. Nunca mais voltou.
Nas duas situações eu havia entrado num conluio com os pacientes, onde eu os gratificava ou me submetia a eles, em determinadas áreas do funcionamento mental, constituindo-se enactments crônicos. Com o primeiro paciente esse conluio foi desfeito quando solicitei o pagamento (enactment agudo). O contato traumático com a discriminação self/objeto foi suportado e terminou por ser produtivo. Na segunda situação a percepção da realidade não foi suportada, substituída por ressentimento crônico, mantendo-se a fantasia de relação dual.
A nomeação
Nos anos de 1990 o psicanalista Robert Caper visitou a sbpsp. Ele estava interessado num tema desconhecido em nosso meio, um tal de enactment. A Diretoria Científica buscava material clínico onde tivesse ocorrido um acting–out. Suspeitava-se que esse fato tinha relação com enactment. Apresentei o
material abaixo e, em certo momento, Caper disse: “isto é um enactment”.
Tratava-se de uma situação em que eu havia mudado de endereço. Saíra de minha residência para um edifício comercial. Com S, a paciente em questão, haviam sido trabalhadas as fantasias sobre a mudança, em forma que me parecia satisfatória. Na primeira sessão no novo consultório, S entra transtornada, atacando-me verbalmente e desprezando o novo endereço, um prédio “sujo e feio”. Afirmava que abandonaria a análise sem esclarecer os motivos. Sua expressão me fazia temer que passasse para um ataque físico. Ficara em pé, com a porta aberta, gritando e ameaçando sair. Sentei-me numa cadeira diferente da habitual, longe do divã e perto da porta. S foi se aproximando e terminou por sentar-se em frente a mim. Discretamente me levantei e fechei a porta.
Com muita dificuldade fui percebendo a relação entre seu estado emocional e o fato de ter-se sentido enganada. Eu não a havia avisado que se tratava de um “edifício burguês, onde todos estavam ali para ganhar dinheiro”. Seus gritos impediam que ela me ouvisse. Terminei a sessão dizendo-lhe que as coisas não estavam claras e que a esperaria no dia seguinte.
Após a sessão senti-me constrangido e culpado. Imaginei que não havia comunicado corretamente a mudança de endereço e/ou havia ficado cego para algum aspecto. Incomodou-me também a impressão de que minha função analítica havia sido danificada durante a sessão.
Nas sessões seguintes S me surpreendeu lembrando-se de fatos novos. Sua família constantemente mudava de casa e de cidade, porque os pais precisavam “ganhar mais dinheiro”. Com isso perdia sua escola, seus amigos, e tinha que adaptar-se a um novo lugar que, logo, seria deixado. S. reviveu esses fatos com minha mudança de endereço. Outras situações traumáticas relacionadas a separações, abandonos e intrusões, algumas construídas como hipóteses (isto é, que não foram lembradas), permitiram que o processo analítico se tornasse mais produtivo.
Não compreendi bem por que Caper chamara o fenômeno de enactment. Para mim era um acting-out de S. Considerava que ela não tinha condições de simbolizar verbalmente seus sentimentos que, dessa forma, haviam sido descarregados.
Lembrava-me também que acting-out era a tradução do termo Agieren (Freud, 1914/1969b), situações onde o paciente representava fatos que não podia lembrar. Essa dramatização se opunha à rememoração. Sabia, também, que Agieren se confundia com a própria noção de transferência.
No entanto, em seu uso comum, os analistas usavam acting-out ou atuação para descargas impulsivas, mais ou menos pontuais, e não era quase usado para representações encenadas que durassem um tempo maior. O advérbio out indicava para algo que era colocado para fora (do mundo interno), em forma rápida. A atuação era vista como um obstáculo para a análise, algo não bem- -vindo. Era comum analistas acusarem o paciente por ter atuado em vez de associar livremente, como se o paciente se “recusasse” a recordar.
O termo atuação era também utilizado para rotular personalidades impulsivas e sociopáticas. O conceito se ampliara, em forma moralística, para a linguagem comum dos profissionais de saúde mental, tornando-se comum a acusação de atuadores a pacientes (e colegas…) questionadores. Curiosamente não se considerava que a maioria dos atos maldosos é fruto de raciocínios sofisticados e não de descargas.
Essa conotação moralística me incomodava porque intuía que se um paciente atuasse ele o faria porque não teria condições suficientes para fazer outra coisa e não porque ele quisesse atacar o analista.
A confusão conceitual em relação ao termo acting-out pode ser resumida da seguinte forma: quando o paciente dramatiza – através de condutas – situações que não se lembra, estamos frente ao Agieren. Esse termo foi traduzido, em inglês, por acting-out. No entanto, em outra vertente, o termo acting-out passou a ser utilizado para atos impulsivos descarregados. Armou-se tal confusão, que no Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis (1995) existem dois verbetes: 1. Acting-out (em inglês, algo curioso num dicionário francês…) referindo-se aos atos impulsivos; 2. Atuação (mise en acte) como tradução do Agieren freudiano, como condutas encenadas opondo-se à rememoração.
Curiosamente, o estudo do enactment, meu próximo desafio, me levaria a considerar descargas e formas simbólicas que substituem a simbolização verbal, discriminando os dois significados. A diferenciação entre acting-out e enactment se tornará clara adiante.
Estudando o conceito descobri que enactment é usado coloquialmente com o sentido de representação teatral, encenação, colocação em cena, similar a to act, to represent, to play. O mesmo uso se encontra em textos psicanalíticos.
O verbo to enact se refere ao fato do paciente externalizar seus dramas internos durante a sessão analítica ou fora dela. Por vezes se usa o verbo to re-enact, com o mesmo sentido. Uma citação de Greenacre é significativa: “Acting-out, como expressão, é uma forma especial de lembrança em que a antiga memória é re-enacted numa forma mais ou menos organizada e apenas ligeiramente disfarçada” (1950, p. 456, tradução minha). A citação mostra que to act out (como Agieren) e to re-enact podem ter quase o mesmo significado.
No entanto, a partir do final dos anos 90 o termo enactment vai adquirindo maior precisão. Surge outra conotação, do mundo jurídico. Enactment significa algo com força de lei, um decreto, algo que tem que ser obrigatoriamente obedecido (Panel, 1999).
Aos poucos o termo passa a envolver os dois significados, ao mesmo tempo, ainda que seu uso coloquial continue. Isto é, a encenação ou representação é associada a algo inevitável, como se obedecesse a uma lei. A conotação depreciativa é superada. Mas, a observação do uso do termo vai além: o enactment ocorre entre paciente e analista, isto é, ambos participam do que está ocorrendo.Diferentemente do acting-out que é algo que ocorre com o paciente e, hipoteticamente, o analista apenas observa. Essa ideia é concomitante à valorização do vértice intersubjetivo na psicanálise contemporânea.
As ideias sobre intersubjetividade consideram que o processo analítico ocorre num campo em que nada ocorre com um dos membros da dupla que não tenha reflexos no outro. O drama contado e representado no campo analítico é fruto da externalização de personagens e enredos colocados em cena por ambos membros da dupla analítica, ainda que a relação entre eles seja assimétrica.
Nesse momento se revalorizam autores que já haviam chamado a atenção para esses fatos, como o casal Baranger, Ferenczi, Winnicott, Rosenfeld, Bion, Betty Joseph etc., e mais recentemente Ferro e Ogden.
Em outros trabalhos, propus considerar que, em área simbólica (não psicótica) o paciente coloca seus “sonhos” (diurnos e noturnos) no campo analítico, através de narrativas e enredos. Esses sonhos são comunicados ao analista através de identificações projetivas normais. O analista, identificado com os sonhos do paciente, os transforma em outros sonhos, modificando as defesas que escondem o reprimido. O analista re-sonha os sonhos do paciente. Este, por sua vez, re-sonha os sonhos contados pelo analista através de suas intervenções e assim por diante. Constituem-se conglomerados simbólicos que chamei sonhos-a-dois, onde a participação de cada membro da dupla vai se tornando menos clara.
Quando predomina o funcionamento da parte psicótica ou traumática (onde a simbolização está prejudicada) o paciente não consegue pensar e os elementos com déficit de simbolização verbal são descarregados, colocados em cena através de condutas, transformados em sintomas corporais ou ainda em alucinose. Ao conjunto desses elementos não pensados adequadamente chamei não-sonhos. O analista, utilizando sua função alfa, transforma os não-sonhos em sonhos.
Existem situações em que os não-sonhos penetram o analista atacando sua capacidade de pensar em forma tal que ele também passa a não-sonhar. Constituem-se não-sonhos-a-dois, conluios duais em que paciente e analista descarregam e/ou repetem condutas compulsivamente, sem dar-se conta do que está ocorrendo. Considero não-sonhos-a-dois a matéria-prima dos enactments crônicos.
Betty Joseph (1989) antecipa a descrição de enactment, mas sem nomeá- -lo, ao estudar minuciosamente como o paciente recruta emocionalmente seu analista para que este represente determinados papéis complementares. Sua função é manter o status quo, evitando mudança psíquica. O analista somente se dá conta desse recrutamento depois que ele ocorre. Em meu modelo, enquantoele não se dá conta, está ocorrendo um enactment crônico. Rosenfeld (1987) descreve, também detalhadamente, situações similares quando levam a impasses analíticos.
Seria necessário um novo termo para fatos que ocorrem no campo analítico e que já foram descritos desde Freud, como no caso Dora ou no sonho de Irma, por exemplo? Ou por Joseph, Rosenfeld e tantos outros? Brown (2011) revisa autores pioneiros que apontavam para fatos similares. Em outros trabalhos (Cassorla, 2013c; 2014c) retomo situações descritas por Bion quando o analista se torna estúpido. Ele afirma que, nesses momentos (de enactments, mas evidentemente Bion não usa o termo), nada há a ser feito a não ser tentar compreender, posteriormente, o que ocorreu (Bion, 1958/1967).
Considero que o termo enactment agregou fenômenos similares que eram descritos de formas próximas porém diferentes, por psicanalistas de várias orientações teóricas. O termo passou a fazer parte do que tem sido chamado common ground em psicanálise. Como qualquer termo novo, ele foi inicialmente visto com aversão e desconfiança. Em seguida passou a ser aceito em forma crítica e reticente. O uso tem se ampliado mas ainda é necessário que se explicite seu significado.
Uma primeira definição tentativa de enactment poderia ser: fenômeno intersubjetivo em que, a partir da indução emocional mútua, o campo analítico é tomado por descargas e/ou condutas e comportamentos que envolvem ambos os membros da dupla analítica, sem que eles se deem conta suficiente do que está ocorrendo, e que remetem a situações em que a simbolização verbal está prejudicada.
Quando existem palavras, elas servem como instrumentos de descargas ou formas de expressar afetos que envolvem emocionalmente o interlocutor. A palavra funciona como ato, em que “dizer é fazer” (Austin, 1990). Trata-se de formas de rememorar através de sentimentos (memory in feelings) e comportamentos colocados em cena no campo analítico. Como no enactment ambos os membros da dupla estão envolvidos (sem dar-se conta), o conceito vai para além do acting-out e do Agieren freudiano, descritos como pertencendo ao paciente.
Como vimos, a clínica me levou a propor dois tipos de enactments. O enactment crônico, em que paciente e analista representam, como numa espécie de teatro mímico, ou cinema mudo, cenas e condutas. O enactment agudo, por sua vez, corresponde a fatos abruptos, do mesmo teor, que num primeiro momento parecem ser apenas descargas. Adiante veremos que são mais do que isso.
Na literatura psicanalítica o termo enactment se refere, quase sempre, ao que chamo enactment agudo, como descarga.
Desafios na investigação
Agora que o termo enactment foi decifrado devemos aprofundar nossa investigação. Temos várias questões desafiadoras: que fatores estão envolvidos no enactment? O enactment é inevitável ou decorre de falhas evitáveis da função analítica? O enactment é útil para o processo analítico ou é sua compreensão que o torna útil? Que configurações emocionais estimulam enactments? E assim por diante. Teremos que ir além da pobre descrição fenomenológica, em busca de visões metapsicológicas. Para tal devemos retornar à clínica.
No primeiro material, K atacava o analista que tentava dar sentido ao que ocorria no campo analítico. Em determinado momento, o analista “perde a cabeça”, dando um soco em sua cadeira. No segundo material, o processo caminhava bem. De repente S “perde a cabeça” e quer parar a análise. O analista, por sua vez, imaginou que “perdera a cabeça” durante a comunicação da mudança de endereço e quando não se sentou na cadeira do analista. Em ambas situações, o “perder a cabeça” indica enactments agudos.
Como vimos, após os enactments agudos os analistas se sentem constrangidos e culpados. Mas, nas sessões seguintes, o processo analítico, surpreendentemente, se desenvolve. O que ocorreu durante a explosão do campo analítico e que fatores fizeram com que o processo analítico se desenvolvesse, posteriormente?
Lembremos que os enactments agudos se seguem a conluios duais que haviam tomado o campo analítico. Com K eu estava envolvido num conluio sadomasoquista com uma repetição compulsiva de situações de violência e submissão mútuas. Com S eu estava envolvido num conluio de idealização mútua, também repetido compulsivamente. Essas repetições lembram sonhos traumáticos, algo para além do princípio do prazer. Mas existem importantes diferenças entre esses sonhos e o enactment crônico. Neste último a ansiedade está tamponada, o analista está envolvido e tanto paciente como analista não se dão conta suficiente do que está ocorrendo.
Após o soco na cadeira K percebe que não estou mais submisso a ela, que sou outra pessoa. O mesmo ocorre com S quando tem que defrontar-se com a mudança de endereço. O trauma revivido no campo analítico é o trauma de tomada de consciência da triangularidade, da separação self/não-self. O enactment agudo mostra a revivescência de traumas, as descargas afetivas e, ao mesmo tempo, a retomada da capacidade de sonhar.
Descobrimos, portanto, que no enactment agudo ocorrem fatos para além das descargas. Ele é um mix de descargas, não-sonhos sendo sonhados e sonhos revertendo para não-sonhos, todos esses fatos ocorrendo ao mesmo tempo. O enactment agudo revela, ao vivo, tanto o trauma do contato com a triangularidade como o início do processo de simbolização. Resumindo o exposto podemos considerar as seguintes fases nas configurações descritas:
- Antes do enactment agudo: o trabalho analítico ocorre em duas áreas paralelas:
- Em área simbólica paciente e analista “sonham-a-dois” e, ao mesmo tempo, em área não simbólica sonham-se não-sonhos;
- Em área não simbólica paciente e analista formam um conluio dual, enactment crônico, como “não-sonho-a-dois”. Esses conluios costumam ter conotação sadomasoquista ou de idealização mútua. Comumente há uma oscilação entre os dois. A dupla não se dá conta suficiente do que está ocorrendo, ainda mais porque em área paralela o processo analítico está se desenvolvendo aparentemente em forma produtiva;
- Enactment agudo. Em determinado momento o campo analítico parece explodir. Trata-se do desfazimento do conluio dual e do surgimento abrupto da realidade triangular, vivenciada como traumática. O campo analítico é tomado por um conglomerado de descargas, não-sonhos sendo sonhados, e sonhos sendo revertidos para não-sonhos. Nesse momento observamos, “ao vivo”, como o trauma de contato com a realidade triangular é, ao mesmo tempo, descarregado, revivido e sonhado;
- Após o enactment agudo. A rede simbólica do pensamento se amplia. Lembranças e construções permitem que o paciente ressignifique fatos primitivos que haviam sido congelados durante o enactment crônico. Estamos em área de não-sonhos sendo sonhados caminhando rumo a “sonhos-a-dois”.
Configurações borderline
Os fatos acima conduzem para a hipótese de que durante o enactment crônico são vividas situações traumáticas primitivas que não puderam ser simbolizadas verbalmente porque foram registradas antes do desenvolvimento da mente simbólica. Estamos em área de inconsciente não reprimido. Ansiedades de aniquilamento, fruto dessas situações traumáticas, são controladas através da fantasia de fusão com o analista. O analista é vivenciado como escudo protetor, substituto do escudo protetor que falhou no desenvolvimento inicial.
Durante o enactment crônico o paciente imobiliza o analista, impedindo que sejam revividas situações de abandono e intrusão, os traumas por excelência. Durante a imobilização, entretanto, a dupla repete (sem saber que repete) essas situações de abandono e intrusão e as defesas contra elas, através de uma espécie de cena teatral mímica ou cinema mudo. Esse fato indica que existe outro tipo de simbolização desses registros iniciais, uma simbolização em conduta ou comportamento. No entanto, a rede simbólica está coarctada e a cena permanece congelada. Somente após o enactment agudo, quando se retoma a capacidade de sonhar, a cena se conecta a símbolos verbais.
Quando o enactment agudo rompe o conluio dual a ansiedade tamponada toma o campo analítico, ameaçando aniquilá-lo. O analista se sente culpado por imaginar que perdeu sua função analítica. Mas, agora sabemos mais sobre essa culpa. Ao desfazer a relação dual e levar a dupla para o espaço triangular o analista intui que está re-traumatizando o paciente. O analista receia que o paciente não suporte este contato com a realidade por falhas na capacidade da dupla em recompor a rede simbólica.
Este último ponto é consequência do seguinte raciocínio. Se o enactment agudo se revelou produtivo, retomando-se a capacidade de sonhar, somos obrigados a constatar que a rede simbólica do pensamento se recuperou. E como ela se recupera? Teremos, novamente, que voltar à clínica.
Revendo o material das sessões antes do enactment agudo verificamos que o analista tinha certa noção dos ataques (com K) e da gratificação mútuos (com S) e trabalhava esses fatos, ainda que de forma não suficiente. Penso que esse trabalho, somado a características do analista (paciência, perseverança, busca constante de novos caminhos, capacidade negativa etc.) constituíram o que chamei função-alfa implícita. Isto é, em áreas paralelas ao enactment crônico, a rede simbólica vai sendo construída e reconstruída. Em determinado momento, nem antes nem depois, o analista intui que existe rede simbólica suficiente para arriscar o contato com a realidade triangular. Caso essa rede não estivesse refeita, em forma suficiente, a dupla retomaria o enactment crônico.
Essas hipóteses são confirmadas pelo estudo minucioso de material clínico. Muitas vezes o analista tenta libertar-se do conluio dual, mas quando a realidade triangular é vivenciada como muito traumática retoma-se o enactment crônico. O processo de “cerzimento” da rede simbólica continua, até que nova tentativa é efetuada. Quando a rede simbólica é suficiente o enactment agudo se impõe (Cassorla, 2008a; 2013b).
O estudo do enactment me levou a uma maior compreensão das configurações borderline, isto é, situações em que traumas primitivos fizeram o paciente criar, através de identificações projetivas, uma carapaça que visa manter uma relação dual com o objeto, no caso o psicanalista. Essa carapaça é altamente instável e o paciente sente que seu rompimento o levará a entrar em contato traumático com a realidade. A relação dual analista/paciente, dentro da carapaça, oscilará entre conluios idealizados que correspondem às organizações patológicas pele fina (Rosenfeld, 1987) e conluios de agressão mútua, que correspondem à pele grossa.
Em outras palavras, o paciente altamente vulnerável (pele fina) se funde ao analista numa relação dual idealizada. Como a todo momento o analista ameaça discriminar-se (o próprio enquadre promove isso), o paciente reclama, não se submete e tenta submetê-lo. A pele grossa predomina e ela também está presente para proteger o paciente de intrusões. Quando a triangularidade ameaça, de novo, o paciente pode retomar o conluio em forma sedutora. Entre oscilações de sedução e violência mútuas o trauma da triangularidade está sempre ameaçando. Essas configurações subjazem ao fato do paciente viver na “fronteira” entre a relação indiscriminada (EP) e a triangularidade (D). Nenhuma das duas é suportada levando às oscilações descritas. Lembremos, por outro lado, que esses pacientes também funcionam com outra parte da personalidade que promove uma aparente boa adaptação ao ambiente.
O estudo do enactment levou-me, também, a constatações de ordem técnica. Em área de sonho (simbólica) o paciente se comunica com seu analista penetrando-o através de dentificações projetivas normais. Constitui-se uma relação dual momentânea que é desfeita assim que o analista mostra, com suas intervenções, que é outra pessoa. Isso é bem evidente quando a interpretação é transferencial ou mutativa (Strachey, 1934). Podemos dizer, portanto, que em área simbólica, constituem-se enactments ou micro-enactments normais, a todo momento da análise, que o analista vai desfazendo através de suas interpretações.
Em áreas psicótica e traumática onde a capacidade simbólica está deteriorada os não-sonhos tomam o analista através de identificações projetivas massivas. Nestas áreas a interpretação transferencial é contraindicada porque não existe rede simbólica suficiente para viver-se na realidade triangular. Essas interpretações não serão compreendidas ou, pior, serão sentidas como traumáticas, o analista impondo a realidade triangular a uma mente sem capacidade para sonhá-la. Antes, portanto, essa rede simbólica terá que ser construída pelo trabalho da dupla.
Poderíamos arriscar certa ampliação das ideias descritas para fatos sociais. Sabemos que o establishment impede mudança catastrófica através de seduções ou ameaças que, mantendo a fusão dual grupal, impedem o pensamento. Situações destrutivas são mantidas congeladas (similar a enactment crônico). Se a capacidade de pensar é retomada, o conluio se desfaz com disrupção grupal produtiva ou insuportável.
Quando um membro traz ideia nova o grupo não a reconhece enquanto tenta “digeri-la” ou destruí-la. Reconhecimento instantâneo ou rápido é consequência de idealização ou medo, conluios duais, com consequente desvitalização. Comumente a ideia nova é aceita quando é reconhecida longe do grupo original. Essa “história natural” do reconhecimento faz parte do funcionamento normal dos grupos humanos7.
Conclusões
Como vimos, o enactment crônico congela, na relação dual, traumas inscritos no inconsciente não reprimido, incluindo fatos transgeracionais. O campo analítico é tomado por configurações arcaicas dramatizadas por ambos os membros da dupla, sem que eles o percebam. A dramatização compreende diferentes formas expressivas que se manifestam através de emoções, mímica, atos, sons, cheiros, formas de construção da linguagem, tons, timbres de voz.
Esta expressividade pode ser muito sutil em sua manifestação visível e muito potente em sua capacidade de envolvimento emocional. Os traumas congelados se revelam, no campo analítico, através do enactment agudo ao mesmo tempo que são sonhados. Sua ressignificação ocorre, portanto, après coup.
Neste momento devo referir-me às ideias de Gabriel Sapisochin, de Madrid, com quem venho mantendo um estimulante diálogo. Sapisochin (2012; 2013) combate a ideia de que não existe simbolização no inconsciente não reprimido. Ele insiste que não há simbolização verbal mas existem outras formas de simbolização. Descreve gestos psíquicos, padrões de relacionamento que foram registrados, em épocas primitivas, e que surgem no campo analítico através de formas ideo-pictográficas. Esses padrões não podem ser colocados em palavras mas são simbolizados através de comportamentos, como um teatro mímico ou um filme mudo. O enactment crônico nada mais é que a colocação em cena desses padrões, tais como “eu o domino e ele se revolta”, “eu o seduzo e ele se submete”, “ele me ataca e eu fujo”, e vice-versa8.
Retornemos à função alfa. Neste trabalho enfatizei sua ação implícita e a associei à profunda comunicação inconsciente entre os membros da dupla analítica. Penso que o sonho inconsciente do analista é captado pelo paciente, para além da comunicação explícita, e esse fato merece maiores investigações.
Continuamos, no entanto, com um problema não totalmente solucionado. Por que razão o analista tem que permanecer no enactment crônico, sem ter consciência disso? Não seria mais útil, para o processo analítico, que o analista se liberasse do conluio e mantivesse a paciência necessária? Para tentar responder a essas questões, faço analogia com a função materna.
Uma mãe adequada procura ser o seu bebê, vivendo situações traumáticas para poder sonhá-las por ele. Para que isso ocorra se cega parcialmente para suas próprias necessidades através de um masoquismo normal. Constituise algo parecido a um enactment, a mãe sofrendo com seu bebê mas não tendo consciência clara desse sofrimento. Com isso, a mãe não percebe o irrealismo de seu masoquismo podendo mantê-lo por todo o tempo que for necessário. Se essa negação for desfeita precocemente, a mãe corre o risco de não suportar sua identificação com o sofrimento do bebê, podendo desligar-se dele de modo traumático.
Em situações extremas, pais podem deixar-se matar para salvar a vida de seus filhos. Isso só será possível se houver uma profunda identificação com eles, sentidos como partes de si mesmos, para além da razão explícita. Nesse modelo o analista tem que negar provisoriamente o irrealismo de seu masoquismo, como ocorre com a mãe do bebê, para poder sofrer junto com seu paciente.
Esta hipótese nos levaria a supor que, em situações em que há certa elaboração dos traumas, o analista terá menos dificuldade em denunciá-los, os conluios duais sendo menos intensos. Possivelmente a experiência do analista e o conhecimento dos fatos estudados facilitará a identificação mais precoce dessas situações, ainda que sempre ocorra après coup. O analista incomodado por não ter clareza suficiente sobre o que está ocorrendo deve escrever sobre seu trabalho e/ou compartilhá-lo com um colega. Esse “segundo” olhar, retomada do trabalho de sonho, permite a entrada de um “terceiro” no conluio dual, contribuindo para seu desfazimento.
Evidentemente o analista pode contribuir para as situações descritas devido a limitações pessoais. Este trabalho não busca justificá-los, mas propõe que devem ser examinados, compreendidos e aproveitados. Visões moralísticas condenatórias impedem o desenvolvimento da capacidade de pensar. Termino este texto discriminando as funções do enactment crônico:
- Evitar a revivescência do trauma, congelando-o e tamponando a ansiedade;
- Imobilizar o analista para que ele não re-traumatize;
- Utilizar o analista como escudo protetor frente ao trauma;
- Permitir contato profundo, inconsciente, entre paciente e analista, que possibilite examinar áreas traumatizadas;
- Utilizar a função-alfa implícita do analista;
- Recompor funções e partes lesadas da mente, elaborando o trauma;
- Esperar o tempo necessário e suficiente para que esse trabalho elaborativo ocorra.
Después de todo, ¿qué es ese tal enactment?
Resumen: El autor relata investigaciones clínicas que lo llevaron a encontrar el concepto de enactment. El estudio minucioso de explosiones del campo analítico reveló que deshacen colusiones duales entre los miembros de la díada analítica.
Estas colusiones congelan situaciones traumáticas primitivas. Al mismo tiempo, el analista, utilizando su función alfa explícita e implícita, recupera la red simbólica defectuosa o inexistente. Cuando ésta se recompone, el trauma es revivido en el campo analítico a través del contacto con la realidad triangular. De esta forma la díada analítica puede soñar-de-dos. Se demuestra que estas situaciones revelan configuraciones borderline que son externalizadas en el campo analítico. Se revisa el concepto de enactment y se propone denominar como enactment crónico a las colusiones duales y enactment agudo a las situaciones en las que esas colusiones son deshechas. Por último, a través de aproximaciones metapsicológicas, se discuten factores relacionados a las situaciones estudiadas tales como vicissitudes de los procesos de simbolización en áreas primitivas, organizaciones defensivas patológicas y comunicación inconsciente entre los miembros de la díada analítica. Palabras clave: enactment, simbolización, borderline, trauma, Agieren.
After all, what is enactment?
Abstract: The author reports clinical investigation which led him to find the concept of enactment. The thorough study of analytical field explosions revealed that they undo dual collusions among the members of analytical dyad. These collusions freeze primal traumatic situations. At the same time, the analyst using his explicit or implicit alpha-function recovers the symbolic defective or nonexistent network. When it is recomposed the trauma is revived in the analytical field through the contact with the triangular reality. This way the analytical dyad can dream-for-two. It is shown that these situations reveal borderline configurations which are externalized in the analytical field. The enactment concept is reviewed and it is proposed to name the dual collusion as chronic enactment and acute enactment to the situations in which hese collusions are dissolved. Finally, through metapsychological approximations, the factors related to the studied situations, such as vicissitudes of the symbolization processes in primal areas, defensive pathological organizations and unconscious communication among the members of the analytical dyad are discussed. Keywords: enactment, symbolization, borderline, trauma, Agieren.
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