Afinal, o que é esse tal enactment?

Roosevelt M. S. Cassorla1

Resumo: O autor relata investigações clínicas que o levaram a encontrar o conceito enactment. O estudo minucioso de explosões do campo analítico revelou que elas desfazem conluios duais entre os membros da dupla analítica.
Esses conluios congelam situações traumáticas primitivas. Ao mesmo tempo, o analista, utilizando sua função alfa explícita e implícita, recupera a rede simbólica defeituosa ou inexistente. Quando ela está recomposta o trauma é revivido no campo analítico através do contato com a realidade triangular. Dessa forma a dupla analítica pode “sonhara-dois”. Demonstra-se que essas situações revelam configurações borderline que são externalizadas no campo analítico. Revisa-se o conceito enactment e propõe-se nomear enactment crônico aos conluios duais e enactment agudo às situações em que esses conluios são desfeitos.
Finalmente, através de aproximações metapsicológicas, discutem-se fatores relacionados às situações estudadas tais como vicissitudes dos processos de simbolização em áreas primitivas, organizações defensivas patológicas e comunição inconsciente entre os membros da dupla analítica.
Palavras-chave: enactment, simbolização, borderline, trauma, Agieren.

onvido o leitor a acompanhar-me no relato de investigações que, a meio caminho, se encontraram com o conceito enactment. O início foi a clínica.

Ainda candidato, na década de 1980, atendia K, uma sofrida jovem. Durante as sessões me sentia invadido por queixas e lamentações que, inicialmente, se referiam a sintomas corporais e à busca desesperada de tratamentos médicos, depois substituídos por queixas em relação a pessoas significativas incompreensivas.

Tentava compreender o que havia para além das lamentações, com pobres resultados. Minhas intervenções eram atacadas ou desvitalizadas. Sentiame frente a uma espécie de muro protegido por metralhadoras que me fuzilavam.

Percebia minha impotência e K se queixava dela também. No entanto, havia momentos em que K parecia aproveitar o trabalho analítico.

Imaginava que estava sendo capaz de suportar os ataques e, na medida do possível, transformá-los em pensamento. Acreditava que as dificuldades seriam vencidas, aos poucos, desde que eu não me deixasse destruir.

Numa determinada sessão, K detalhava frustrações e incompreensões, na forma lamentadora habitual. Eu ouvia calmamente (ou assim me parecia) e buscava por onde intervir. A intensidade crescente dos ataques dificultava a manutenção de minha paciência. K mal me ouvia e falava junto comigo, por vezes gritando. Pacientemente eu interrompia minhas intervenções esperando que ela se acalmasse.

Em determinado momento me surpreendi dando um soco no braço da cadeira enquanto interrompia K dizendo-lhe que ela não me escutava e não me deixava falar. Senti-me perplexo e assustado ao ouvir o barulho do soco e a irritação em minha voz.

K assinalou, ironicamente, que eu havia ficado nervoso. Mais controlado lhe disse que sim, ela tinha razão, eu era humano. E acrescentei: “ainda bem que você tem um analista que fica nervoso, e que se não fosse isso eu estaria com medo de você e você não teria analista”. A sessão terminou em seguida, sem condições para conversarmos sobre o que havia ocorrido.

Quando K saiu me senti envergonhado e culpado. Estava certo que minha função analítica havia sido destruída e que havia maltratado K. Receava que ela não mais voltasse. E tratava-se da paciente escolhida para minha primeira supervisão oficial.

Mesmo perturbado pude imaginar o que ocorrera. K havia projetado elementos não pensáveis dentro de mim que, em forma complementar, se “engancharam” a aspectos meus não suficientemente elaborados. Considerava-me responsável pela situação e não tinha clareza sobre os aspectos de minha contratransferência que haviam sido “atuados”. Essa situação seria nomeada, anos após, enactment agudo.

No dia seguinte, me surpreendo com K chegando à sessão. Minha satisfação inicial foi seguida de apreensão. Tinha certeza que K se vingaria. Mas ela estava calma, suas associações eram produtivas, eu me senti analiticamente potente. A sessão foi satisfatória, como há muito não ocorria.

Nas sessões seguintes minha surpresa aumentou. K, emocionada, lembrou-se de situações traumáticas ocorridas durante sua vida, envolvendo separações, abandonos e intrusões. Essas lembranças foram estimuladas pela situação descrita com a qual se articularam. Sua ressignificação somada a construções hipotéticas ampliou a rede simbólica do pensamento.

A surpresa, ainda que agradável, me intrigou. Desde então venho me dedicando a sua compreensão. Parti de conceitos que me pareciam próximos, tais como contratransferência complementar, identificação projetiva massiva, contraidentificação projetiva, atualizações, tela beta e outras formas de comunicação primitiva. O primeiro trabalho, apresentado na sbpsp em 1985, foi publicado 10 anos após (Cassorla, 1995). Outros trabalhos se seguiram (por exemplo, Cassorla, 2001; 2003; 2004; 2005a; 2005b; 2007; 2008a; 2008b; 2008c; 2009a; 2009b; 2012a), onde o leitor poderá acompanhar, em detalhes, os passos da investigação. Eles têm me levado ao estudo do processo de simbolização e suas formas de expressão no campo analítico (Cassorla, 2012b; 2013a; 2013b e textos no prelo).

Revendo a situação fui capaz de perceber que o enactment agudo (o soco na cadeira) se seguiu a um conluio dual de violência e submissão mútuas que havia tomado, antes, o campo analítico. K me atacava e eu me submetia a esses ataques, sem dar-me conta suficiente do fato. Minha paciência parecia masoquista. Por outro lado, eu submetia K à impotência de minha função analítica.

Ambos os membros da dupla analítica se sentiam prolongamento um do outro (Cassorla, 1997). Tempos depois chamaria esse conluio enactment crônico.

Percebi, também, que o enactment agudo indica a liberação do analista do conluio dual. O paciente entra em contato com o fato de que o analista é outra pessoa. A discriminação self/objeto é vivenciada como traumática. Adiante esses aspectos serão estudados em detalhes.

Percebi que fatos próximos já me intrigavam bem antes de defrontar–me com essa situação. Desde o maltrato de equipes de saúde a determinados pacientes, tais como tentadores de suicídio (Cassorla, 1985), até “falhas” do analista quando se engana em relação a horários, esquece de alguma sessão, troca nomes, usa tom de voz sedutor, impaciente, irônico etc. Essas situações se tornavam produtivas quando a dupla as reconhecia e discutia. Uma situação marcante ocorreu antes de tornar-me analista. Um paciente me disse, ao final da sessão, que havia esquecido o cheque e que me pagaria na próxima sessão.

Eu lhe disse que deixasse o cheque na portaria, no mesmo dia, porque eu tinha um pagamento que venceria no dia seguinte. Senti-me constrangido tanto com a cobrança como com a exposição. Na sessão seguinte o paciente me disse que nunca imaginaria que eu precisasse de dinheiro. A partir desse fato pudemos trabalhar sua fantasia que eu era uma espécie de seio inesgotável que estava ali só para satisfazê-lo, sem ter vida própria.

Lembro-me de outra situação, com resultado oposto. Cobrava honorários baixos de uma paciente. Aos poucos percebi que eu fora influenciado por suas lamentações. Ao trabalhar esses fatos, a paciente passou a atrasar o pagamento tentando seduzir-me a reduzir mais os honorários. Após bastante trabalho analítico chegou-se à conclusão que seria melhor interromper a análise até que sua situação melhorasse. Agradeceu-me por minha ajuda e prometeu voltar.

Tempos depois soube que me difamava. Nunca mais voltou.

Nas duas situações eu havia entrado num conluio com os pacientes, onde eu os gratificava ou me submetia a eles, em determinadas áreas do funcionamento mental, constituindo-se enactments crônicos. Com o primeiro paciente esse conluio foi desfeito quando solicitei o pagamento (enactment agudo). O contato traumático com a discriminação self/objeto foi suportado e terminou por ser produtivo. Na segunda situação a percepção da realidade não foi suportada, substituída por ressentimento crônico, mantendo-se a fantasia de relação dual.

A nomeação

Nos anos de 1990 o psicanalista Robert Caper visitou a sbpsp. Ele estava interessado num tema desconhecido em nosso meio, um tal de enactment. A Diretoria Científica buscava material clínico onde tivesse ocorrido um acting–out. Suspeitava-se que esse fato tinha relação com enactment. Apresentei o

material abaixo e, em certo momento, Caper disse: “isto é um enactment”.

Tratava-se de uma situação em que eu havia mudado de endereço. Saíra de minha residência para um edifício comercial. Com S, a paciente em questão, haviam sido trabalhadas as fantasias sobre a mudança, em forma que me parecia satisfatória. Na primeira sessão no novo consultório, S entra transtornada, atacando-me verbalmente e desprezando o novo endereço, um prédio “sujo e feio”. Afirmava que abandonaria a análise sem esclarecer os motivos. Sua expressão me fazia temer que passasse para um ataque físico. Ficara em pé, com a porta aberta, gritando e ameaçando sair. Sentei-me numa cadeira diferente da habitual, longe do divã e perto da porta. S foi se aproximando e terminou por sentar-se em frente a mim. Discretamente me levantei e fechei a porta.

Com muita dificuldade fui percebendo a relação entre seu estado emocional e o fato de ter-se sentido enganada. Eu não a havia avisado que se tratava de um “edifício burguês, onde todos estavam ali para ganhar dinheiro”. Seus gritos impediam que ela me ouvisse. Terminei a sessão dizendo-lhe que as coisas não estavam claras e que a esperaria no dia seguinte.

Após a sessão senti-me constrangido e culpado. Imaginei que não havia comunicado corretamente a mudança de endereço e/ou havia ficado cego para algum aspecto. Incomodou-me também a impressão de que minha função analítica havia sido danificada durante a sessão.

Nas sessões seguintes S me surpreendeu lembrando-se de fatos novos. Sua família constantemente mudava de casa e de cidade, porque os pais precisavam “ganhar mais dinheiro”. Com isso perdia sua escola, seus amigos, e tinha que adaptar-se a um novo lugar que, logo, seria deixado. S. reviveu esses fatos com minha mudança de endereço. Outras situações traumáticas relacionadas a separações, abandonos e intrusões, algumas construídas como hipóteses (isto é, que não foram lembradas), permitiram que o processo analítico se tornasse mais produtivo.

Não compreendi bem por que Caper chamara o fenômeno de enactment. Para mim era um acting-out de S. Considerava que ela não tinha condições de simbolizar verbalmente seus sentimentos que, dessa forma, haviam sido descarregados.

Lembrava-me também que acting-out era a tradução do termo Agieren (Freud, 1914/1969b), situações onde o paciente representava fatos que não podia lembrar. Essa dramatização se opunha à rememoração. Sabia, também, que Agieren se confundia com a própria noção de transferência.

No entanto, em seu uso comum, os analistas usavam acting-out ou atuação para descargas impulsivas, mais ou menos pontuais, e não era quase usado para representações encenadas que durassem um tempo maior. O advérbio out indicava para algo que era colocado para fora (do mundo interno), em forma rápida. A atuação era vista como um obstáculo para a análise, algo não bem- -vindo. Era comum analistas acusarem o paciente por ter atuado em vez de associar livremente, como se o paciente se “recusasse” a recordar.

O termo atuação era também utilizado para rotular personalidades impulsivas e sociopáticas. O conceito se ampliara, em forma moralística, para a linguagem comum dos profissionais de saúde mental, tornando-se comum a acusação de atuadores a pacientes (e colegas…) questionadores. Curiosamente não se considerava que a maioria dos atos maldosos é fruto de raciocínios sofisticados e não de descargas.

Essa conotação moralística me incomodava porque intuía que se um paciente atuasse ele o faria porque não teria condições suficientes para fazer outra coisa e não porque ele quisesse atacar o analista.

A confusão conceitual em relação ao termo acting-out pode ser resumida da seguinte forma: quando o paciente dramatiza – através de condutas – situações que não se lembra, estamos frente ao Agieren. Esse termo foi traduzido, em inglês, por acting-out. No entanto, em outra vertente, o termo acting-out passou a ser utilizado para atos impulsivos descarregados. Armou-se tal confusão, que no Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis (1995) existem dois verbetes: 1. Acting-out (em inglês, algo curioso num dicionário francês…) referindo-se aos atos impulsivos; 2. Atuação (mise en acte) como tradução do Agieren freudiano, como condutas encenadas opondo-se à rememoração.

Curiosamente, o estudo do enactment, meu próximo desafio, me levaria a considerar descargas e formas simbólicas que substituem a simbolização verbal, discriminando os dois significados. A diferenciação entre acting-out e enactment se tornará clara adiante.

Estudando o conceito descobri que enactment é usado coloquialmente com o sentido de representação teatral, encenação, colocação em cena, similar a to act, to represent, to play. O mesmo uso se encontra em textos psicanalíticos.

O verbo to enact se refere ao fato do paciente externalizar seus dramas internos durante a sessão analítica ou fora dela. Por vezes se usa o verbo to re-enact, com o mesmo sentido. Uma citação de Greenacre é significativa: “Acting-out, como expressão, é uma forma especial de lembrança em que a antiga memória é re-enacted numa forma mais ou menos organizada e apenas ligeiramente disfarçada” (1950, p. 456, tradução minha). A citação mostra que to act out (como Agieren) e to re-enact podem ter quase o mesmo significado.

No entanto, a partir do final dos anos 90 o termo enactment vai adquirindo maior precisão. Surge outra conotação, do mundo jurídico. Enactment significa algo com força de lei, um decreto, algo que tem que ser obrigatoriamente obedecido (Panel, 1999).

Aos poucos o termo passa a envolver os dois significados, ao mesmo tempo, ainda que seu uso coloquial continue. Isto é, a encenação ou representação é associada a algo inevitável, como se obedecesse a uma lei. A conotação depreciativa é superada. Mas, a observação do uso do termo vai além: o enactment ocorre entre paciente e analista, isto é, ambos participam do que está ocorrendo.Diferentemente do acting-out que é algo que ocorre com o paciente e, hipoteticamente, o analista apenas observa. Essa ideia é concomitante à valorização do vértice intersubjetivo na psicanálise contemporânea.

As ideias sobre intersubjetividade consideram que o processo analítico ocorre num campo em que nada ocorre com um dos membros da dupla que não tenha reflexos no outro. O drama contado e representado no campo analítico é fruto da externalização de personagens e enredos colocados em cena por ambos membros da dupla analítica, ainda que a relação entre eles seja assimétrica.

Nesse momento se revalorizam autores que já haviam chamado a atenção para esses fatos, como o casal Baranger, Ferenczi, Winnicott, Rosenfeld, Bion, Betty Joseph etc., e mais recentemente Ferro e Ogden.

Em outros trabalhos, propus considerar que, em área simbólica (não psicótica) o paciente coloca seus “sonhos” (diurnos e noturnos) no campo analítico, através de narrativas e enredos. Esses sonhos são comunicados ao analista através de identificações projetivas normais. O analista, identificado com os sonhos do paciente, os transforma em outros sonhos, modificando as defesas que escondem o reprimido. O analista re-sonha os sonhos do paciente. Este, por sua vez, re-sonha os sonhos contados pelo analista através de suas intervenções e assim por diante. Constituem-se conglomerados simbólicos que chamei sonhos-a-dois, onde a participação de cada membro da dupla vai se tornando menos clara.

Quando predomina o funcionamento da parte psicótica ou traumática (onde a simbolização está prejudicada) o paciente não consegue pensar e os elementos com déficit de simbolização verbal são descarregados, colocados em cena através de condutas, transformados em sintomas corporais ou ainda em alucinose. Ao conjunto desses elementos não pensados adequadamente chamei não-sonhos. O analista, utilizando sua função alfa, transforma os não-sonhos em sonhos.

Existem situações em que os não-sonhos penetram o analista atacando sua capacidade de pensar em forma tal que ele também passa a não-sonhar. Constituem-se não-sonhos-a-dois, conluios duais em que paciente e analista descarregam e/ou repetem condutas  compulsivamente, sem dar-se conta do que está ocorrendo. Considero não-sonhos-a-dois a matéria-prima dos enactments crônicos.

Betty Joseph (1989) antecipa a descrição de enactment, mas sem nomeá- -lo, ao estudar minuciosamente como o paciente recruta emocionalmente seu analista para que este represente determinados papéis complementares. Sua função é manter o status quo, evitando mudança psíquica. O analista somente se dá conta desse recrutamento depois que ele ocorre. Em meu modelo, enquantoele não se dá conta, está ocorrendo um enactment crônico. Rosenfeld (1987) descreve, também detalhadamente, situações similares quando levam a impasses analíticos.

Seria necessário um novo termo para fatos que ocorrem no campo analítico e que já foram descritos desde Freud, como no caso Dora ou no sonho de Irma, por exemplo? Ou por Joseph, Rosenfeld e tantos outros? Brown (2011) revisa autores pioneiros que apontavam para fatos similares. Em outros trabalhos (Cassorla, 2013c; 2014c) retomo situações descritas por Bion quando o analista se torna estúpido. Ele afirma que, nesses momentos (de enactments, mas evidentemente Bion não usa o termo), nada há a ser feito a não ser tentar compreender, posteriormente, o que ocorreu (Bion, 1958/1967).

Considero que o termo enactment agregou fenômenos similares que eram descritos de formas próximas porém diferentes, por psicanalistas de várias orientações teóricas. O termo passou a fazer parte do que tem sido chamado common ground em psicanálise. Como qualquer termo novo, ele foi inicialmente visto com aversão e desconfiança. Em seguida passou a ser aceito em forma crítica e reticente. O uso tem se ampliado mas ainda é necessário que se explicite seu significado.

Uma primeira definição tentativa de enactment poderia ser: fenômeno intersubjetivo em que, a partir da indução emocional mútua, o campo analítico é tomado por descargas e/ou condutas e comportamentos que envolvem ambos os membros da dupla analítica, sem que eles se deem conta suficiente do que está ocorrendo, e que remetem a situações em que a simbolização verbal está prejudicada.

Quando existem palavras, elas servem como instrumentos de descargas ou formas de expressar afetos que envolvem emocionalmente o interlocutor. A palavra funciona como ato, em que “dizer é fazer” (Austin, 1990). Trata-se de formas de rememorar através de sentimentos (memory in feelings) e comportamentos colocados em cena no campo analítico. Como no enactment ambos os membros da dupla estão envolvidos (sem dar-se conta), o conceito vai para além do acting-out e do Agieren freudiano, descritos como pertencendo ao paciente.

Como vimos, a clínica me levou a propor dois tipos de enactments. O enactment crônico, em que paciente e analista representam, como numa espécie de teatro mímico, ou cinema mudo, cenas e condutas. O enactment agudo, por sua vez, corresponde a fatos abruptos, do mesmo teor, que num primeiro momento parecem ser apenas descargas. Adiante veremos que são mais do que isso.

Na literatura psicanalítica o termo enactment se refere, quase sempre, ao que chamo enactment agudo, como descarga.

Desafios na investigação

Agora que o termo enactment foi decifrado devemos aprofundar nossa investigação. Temos várias questões desafiadoras: que fatores estão envolvidos no enactment? O enactment é inevitável ou decorre de falhas evitáveis da função analítica? O enactment é útil para o processo analítico ou é sua compreensão que o torna útil? Que configurações emocionais estimulam enactments? E assim por diante. Teremos que ir além da pobre descrição fenomenológica, em busca de visões metapsicológicas. Para tal devemos retornar à clínica.

No primeiro material, K atacava o analista que tentava dar sentido ao que ocorria no campo  analítico. Em determinado momento, o analista “perde a cabeça”, dando um soco em sua cadeira. No segundo material, o processo caminhava bem. De repente S “perde a cabeça” e quer parar a análise. O analista, por sua vez, imaginou que “perdera a cabeça” durante a comunicação da mudança de endereço e quando não se sentou na cadeira do analista. Em ambas situações, o “perder a cabeça” indica enactments agudos.

Como vimos, após os enactments agudos os analistas se sentem constrangidos e culpados. Mas, nas sessões seguintes, o processo analítico, surpreendentemente, se desenvolve. O que ocorreu durante a explosão do campo analítico e que fatores fizeram com que o processo analítico se desenvolvesse, posteriormente?

Lembremos que os enactments agudos se seguem a conluios duais que haviam tomado o campo analítico. Com K eu estava envolvido num conluio sadomasoquista com uma repetição compulsiva de situações de violência e submissão mútuas. Com S eu estava envolvido num conluio de idealização mútua, também repetido compulsivamente. Essas repetições lembram sonhos traumáticos, algo para além do princípio do prazer. Mas existem importantes diferenças entre esses sonhos e o enactment crônico. Neste último a ansiedade está tamponada, o analista está envolvido e tanto paciente como analista não se dão conta suficiente do que está ocorrendo.

Após o soco na cadeira K percebe que não estou mais submisso a ela, que sou outra pessoa. O mesmo ocorre com S quando tem que defrontar-se com a mudança de endereço. O trauma revivido no campo analítico é o trauma de tomada de consciência da triangularidade, da separação self/não-self. O enactment agudo mostra a revivescência de traumas, as descargas afetivas e, ao mesmo tempo, a retomada da capacidade de sonhar.

Descobrimos, portanto, que no enactment agudo ocorrem fatos para além das descargas. Ele é um mix de descargas, não-sonhos sendo sonhados e sonhos revertendo para não-sonhos, todos esses fatos ocorrendo ao mesmo tempo. O enactment agudo revela, ao vivo, tanto o trauma do contato com a triangularidade como o início do processo de simbolização. Resumindo o exposto podemos considerar as seguintes fases nas configurações descritas:

  1. Antes do enactment agudo: o trabalho analítico ocorre em duas áreas paralelas:
  2. Em área simbólica paciente e analista “sonham-a-dois” e, ao mesmo tempo, em área não simbólica sonham-se não-sonhos;
  3. Em área não simbólica paciente e analista formam um conluio dual, enactment crônico, como “não-sonho-a-dois”. Esses conluios costumam ter conotação sadomasoquista ou de idealização mútua. Comumente há uma oscilação entre os dois. A dupla não se dá conta suficiente do que está ocorrendo, ainda mais porque em área paralela o processo analítico está se desenvolvendo aparentemente em forma produtiva;
  4. Enactment agudo. Em determinado momento o campo analítico parece explodir. Trata-se do desfazimento do conluio dual e do surgimento abrupto da realidade triangular, vivenciada como traumática. O campo analítico é tomado por um conglomerado de descargas, não-sonhos sendo sonhados, e sonhos sendo revertidos para não-sonhos. Nesse momento observamos, “ao vivo”, como o trauma de contato com a realidade triangular é, ao mesmo tempo, descarregado, revivido e sonhado;
  5. Após o enactment agudo. A rede simbólica do pensamento se amplia. Lembranças e construções permitem que o paciente ressignifique fatos primitivos que haviam sido congelados durante o enactment crônico. Estamos em área de não-sonhos sendo sonhados caminhando rumo a “sonhos-a-dois”.

Configurações borderline

Os fatos acima conduzem para a hipótese de que durante o enactment crônico são vividas situações traumáticas primitivas que não puderam ser simbolizadas verbalmente porque foram registradas antes do desenvolvimento da mente simbólica. Estamos em área de inconsciente não reprimido. Ansiedades de aniquilamento, fruto dessas situações traumáticas, são controladas através da fantasia de fusão com o analista. O analista é vivenciado como escudo protetor, substituto do escudo protetor que falhou no desenvolvimento inicial.

Durante o enactment crônico o paciente imobiliza o analista, impedindo que sejam revividas situações de abandono e intrusão, os traumas por excelência. Durante a imobilização, entretanto, a dupla repete (sem saber que repete) essas situações de abandono e intrusão e as defesas contra elas, através de uma espécie de cena teatral mímica ou cinema mudo. Esse fato indica que existe outro tipo de simbolização desses registros iniciais, uma simbolização em conduta ou comportamento. No entanto, a rede simbólica está coarctada e a cena permanece congelada. Somente após o enactment agudo, quando se retoma a capacidade de sonhar, a cena se conecta a símbolos verbais.

Quando o enactment agudo rompe o conluio dual a ansiedade tamponada toma o campo analítico, ameaçando aniquilá-lo. O analista se sente culpado por imaginar que perdeu sua função analítica. Mas, agora sabemos mais sobre essa culpa. Ao desfazer a relação dual e levar a dupla para o espaço triangular o analista intui que está re-traumatizando o paciente. O analista receia que o paciente não suporte este contato com a realidade por falhas na capacidade da dupla em recompor a rede simbólica.

Este último ponto é consequência do seguinte raciocínio. Se o enactment agudo se revelou produtivo, retomando-se a capacidade de sonhar, somos obrigados a constatar que a rede simbólica do pensamento se recuperou. E como ela se recupera? Teremos, novamente, que voltar à clínica.

Revendo o material das sessões antes do enactment agudo verificamos que o analista tinha certa noção dos ataques (com K) e da gratificação mútuos (com S) e trabalhava esses fatos, ainda que de forma não suficiente. Penso que esse trabalho, somado a características do analista (paciência, perseverança, busca constante de novos caminhos, capacidade negativa etc.) constituíram o que chamei função-alfa implícita. Isto é, em áreas paralelas ao enactment crônico, a rede simbólica vai sendo construída e reconstruída. Em determinado momento, nem antes nem depois, o analista intui que existe rede simbólica suficiente para arriscar o contato com a realidade triangular. Caso essa rede não estivesse refeita, em forma suficiente, a dupla retomaria o enactment crônico.

Essas hipóteses são confirmadas pelo estudo minucioso de material clínico. Muitas vezes o analista tenta libertar-se do conluio dual, mas quando a realidade triangular é vivenciada como muito traumática retoma-se o enactment crônico. O processo de “cerzimento” da rede simbólica continua, até que nova tentativa é efetuada. Quando a rede simbólica é suficiente o enactment agudo se impõe (Cassorla, 2008a; 2013b).

O estudo do enactment me levou a uma maior compreensão das configurações borderline, isto é, situações em que traumas primitivos fizeram o paciente criar, através de identificações projetivas, uma carapaça que visa manter uma relação dual com o objeto, no caso o psicanalista. Essa carapaça é altamente instável e o paciente sente que seu rompimento o levará a entrar em contato traumático com a realidade. A relação dual analista/paciente, dentro da carapaça, oscilará entre conluios idealizados que correspondem às organizações patológicas pele fina (Rosenfeld, 1987) e conluios de agressão mútua, que correspondem à pele grossa.

Em outras palavras, o paciente altamente vulnerável (pele fina) se funde ao analista numa relação dual idealizada. Como a todo momento o analista ameaça discriminar-se (o próprio enquadre promove isso), o paciente reclama, não se submete e tenta submetê-lo. A pele grossa predomina e ela também está presente para proteger o paciente de intrusões. Quando a triangularidade ameaça, de novo, o paciente pode retomar o conluio em forma sedutora. Entre oscilações de sedução e violência mútuas o trauma da triangularidade está sempre ameaçando. Essas configurações subjazem ao fato do paciente viver na “fronteira” entre a relação indiscriminada (EP) e a triangularidade (D). Nenhuma das duas é suportada levando às oscilações descritas. Lembremos, por outro lado, que esses pacientes também funcionam com outra parte da personalidade que promove uma aparente boa adaptação ao ambiente.

O estudo do enactment levou-me, também, a constatações de ordem técnica. Em área de sonho (simbólica) o paciente se comunica com seu analista penetrando-o através de dentificações projetivas normais. Constitui-se uma relação dual momentânea que é desfeita assim que o analista mostra, com suas intervenções, que é outra pessoa. Isso é bem evidente quando a interpretação é transferencial ou mutativa (Strachey, 1934). Podemos dizer, portanto, que em área simbólica, constituem-se enactments ou micro-enactments normais, a todo momento da análise, que o analista vai desfazendo através de suas interpretações.

Em áreas psicótica e traumática onde a capacidade simbólica está deteriorada os não-sonhos tomam o analista através de identificações projetivas massivas. Nestas áreas a interpretação transferencial é contraindicada porque não existe rede simbólica suficiente para viver-se na realidade triangular. Essas interpretações não serão compreendidas ou, pior, serão sentidas como traumáticas, o analista impondo a realidade triangular a uma mente sem capacidade para sonhá-la. Antes, portanto, essa rede simbólica terá que ser construída pelo trabalho da dupla.

Poderíamos arriscar certa ampliação das ideias descritas para fatos sociais. Sabemos que o establishment impede mudança catastrófica através de seduções ou ameaças que, mantendo a fusão dual grupal, impedem o pensamento. Situações destrutivas são mantidas congeladas (similar a enactment crônico). Se a capacidade de pensar é retomada, o conluio se desfaz com disrupção grupal produtiva ou insuportável.

Quando um membro traz ideia nova o grupo não a reconhece enquanto tenta “digeri-la” ou destruí-la. Reconhecimento instantâneo ou rápido é consequência de idealização ou medo, conluios duais, com consequente desvitalização. Comumente a ideia nova é aceita quando é reconhecida longe do grupo original. Essa “história natural” do reconhecimento faz parte do funcionamento normal dos grupos humanos7.

Conclusões

Como vimos, o enactment crônico congela, na relação dual, traumas inscritos no inconsciente não reprimido, incluindo fatos transgeracionais. O campo analítico é tomado por configurações arcaicas dramatizadas por ambos os membros da dupla, sem que eles o percebam. A dramatização compreende diferentes formas expressivas que se manifestam através de emoções, mímica, atos, sons, cheiros, formas de construção da linguagem, tons, timbres de voz.

Esta expressividade pode ser muito sutil em sua manifestação visível e muito potente em sua capacidade de envolvimento emocional. Os traumas congelados se revelam, no campo analítico, através do enactment agudo ao mesmo tempo que são sonhados. Sua ressignificação ocorre, portanto, après coup.

Neste momento devo referir-me às ideias de Gabriel Sapisochin, de Madrid, com quem venho mantendo um estimulante diálogo. Sapisochin (2012; 2013) combate a ideia de que não existe simbolização no inconsciente não reprimido. Ele insiste que não há simbolização verbal mas existem outras formas de simbolização. Descreve gestos psíquicos, padrões de relacionamento que foram registrados, em épocas primitivas, e que surgem no campo analítico através de formas ideo-pictográficas. Esses padrões não podem ser colocados em palavras mas são simbolizados através de comportamentos, como um teatro mímico ou um filme mudo. O enactment crônico nada mais é que a colocação em cena desses padrões, tais como “eu o domino e ele se revolta”, “eu o seduzo e ele se submete”, “ele me ataca e eu fujo”, e vice-versa8.

Retornemos à função alfa. Neste trabalho enfatizei sua ação implícita e a associei à profunda comunicação inconsciente entre os membros da dupla analítica. Penso que o sonho inconsciente do analista é captado pelo paciente, para além da comunicação explícita, e esse fato merece maiores investigações.

Continuamos, no entanto, com um problema não totalmente solucionado. Por que razão o analista tem que permanecer no enactment crônico, sem ter consciência disso? Não seria mais útil, para o processo analítico, que o analista se liberasse do conluio e mantivesse a paciência necessária? Para tentar responder a essas questões, faço analogia com a função materna.

Uma mãe adequada procura ser o seu bebê, vivendo situações traumáticas para poder sonhá-las por ele. Para que isso ocorra se cega parcialmente para suas próprias necessidades através de um masoquismo normal. Constituise algo parecido a um enactment, a mãe sofrendo com seu bebê mas não tendo consciência clara desse sofrimento. Com isso, a mãe não percebe o irrealismo de seu masoquismo podendo mantê-lo por todo o tempo que for necessário. Se essa negação for desfeita precocemente, a mãe corre o risco de não suportar sua identificação com o sofrimento do bebê, podendo desligar-se dele de modo traumático.

Em situações extremas, pais podem deixar-se matar para salvar a vida de seus filhos. Isso só será possível se houver uma profunda identificação com eles, sentidos como partes de si mesmos, para além da razão explícita. Nesse modelo o analista tem que negar provisoriamente o irrealismo de seu masoquismo, como ocorre com a mãe do bebê, para poder sofrer junto com seu paciente.

Esta hipótese nos levaria a supor que, em situações em que há certa elaboração dos traumas, o analista terá menos dificuldade em denunciá-los, os conluios duais sendo menos intensos. Possivelmente a experiência do analista e o conhecimento dos fatos estudados facilitará a identificação mais precoce dessas situações, ainda que sempre ocorra après coup. O analista incomodado por não ter clareza suficiente sobre o que está ocorrendo deve escrever sobre seu  trabalho e/ou compartilhá-lo com um colega. Esse “segundo” olhar, retomada do trabalho de sonho, permite a entrada de um “terceiro” no conluio dual, contribuindo para seu desfazimento.

Evidentemente o analista pode contribuir para as situações descritas devido a limitações pessoais. Este trabalho não busca justificá-los, mas propõe que devem ser examinados, compreendidos e aproveitados. Visões moralísticas condenatórias impedem o desenvolvimento da capacidade de pensar. Termino este texto discriminando as funções do enactment crônico:

  1. Evitar a revivescência do trauma, congelando-o e tamponando a ansiedade;
  2. Imobilizar o analista para que ele não re-traumatize;
  3. Utilizar o analista como escudo protetor frente ao trauma;
  4. Permitir contato profundo, inconsciente, entre paciente e analista, que possibilite examinar áreas traumatizadas;
  5. Utilizar a função-alfa implícita do analista;
  6. Recompor funções e partes lesadas da mente, elaborando o trauma;
  7. Esperar o tempo necessário e suficiente para que esse trabalho elaborativo ocorra.

Después de todo, ¿qué es ese tal enactment?

Resumen: El autor relata investigaciones clínicas que lo llevaron a encontrar el concepto de enactment. El estudio minucioso de explosiones del campo analítico reveló que deshacen colusiones duales entre los miembros de la díada analítica.

Estas colusiones congelan situaciones traumáticas primitivas. Al mismo tiempo, el analista, utilizando su función alfa explícita e implícita, recupera la red simbólica defectuosa o inexistente. Cuando ésta se recompone, el trauma es revivido en el campo analítico a través del contacto con la realidad triangular. De esta forma la díada analítica puede soñar-de-dos. Se demuestra que estas situaciones revelan configuraciones borderline que son externalizadas en el campo analítico. Se revisa el concepto de enactment y se propone denominar como enactment crónico a las colusiones duales y enactment agudo a las situaciones en las que esas colusiones son deshechas. Por último, a través de aproximaciones metapsicológicas, se discuten factores relacionados a las situaciones estudiadas tales como vicissitudes de los procesos de simbolización en áreas primitivas, organizaciones defensivas patológicas y comunicación inconsciente entre los miembros de la díada analítica. Palabras clave: enactment, simbolización, borderline, trauma, Agieren.

After all, what is enactment?

Abstract: The author reports clinical investigation which led him to find the concept of enactment. The thorough study of analytical field explosions revealed that they undo dual collusions among the members of analytical dyad. These collusions freeze primal traumatic situations. At the same time, the analyst using his explicit or implicit alpha-function recovers the symbolic defective or nonexistent network. When it is recomposed the trauma is revived in the analytical field through the contact with the triangular reality. This way the analytical dyad can dream-for-two. It is shown that these situations reveal borderline configurations which are externalized in the analytical field. The enactment concept is reviewed and it is proposed to name the dual collusion as chronic enactment and acute enactment to the situations in which  hese collusions are dissolved. Finally, through metapsychological approximations, the factors related to the studied situations, such as vicissitudes of the symbolization processes in primal areas, defensive pathological organizations and unconscious communication among the members of the analytical dyad are discussed. Keywords: enactment, symbolization, borderline, trauma, Agieren.

Referências

Austin, J. L. (1990). Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas.
Bion, W. R. (1967). On arrogance. In W. R. Bion, Second Thoughts – Selected Papers on Psycho-

Analysis (pp. 86-92). Londres: William Heinemann. (Trabalho original publicado em 1958)
Brown, L. J. (2011). Intersubjective Processes and the Unconscious: An Integration of Freudian,

Kleinian and Bionian Perspectives. Nova York: Routledge.
Cassorla, R. M. S. (1985). Depression and suicide in adolescence. In Pan American Health

Association (Org.), The Health of Adolescents and Youths in the Americas (pp. 156-169).
Washington: PAHO.
Cassorla, R. M. S. (1995). Comunicação primitiva e contra-reações na situação analítica.

Arquivos de Psiquiatria, Psicoterapia e Psicanálise (Porto Alegre), 2, 11-33.
Cassorla, R. M. S. (1997). No emaranhado de identificações projetivas cruzadas com adolescentes e seus pais. Revista Brasileira de Psicanálise, 31, 639-676.

Cassorla, R. M. S. (2001). Acute enactment as resource in disclosing a collusion between the analytical dyad. International Journal of Psychoanalysis, 82, 1155-1170. (Trabalho também publicado em 2000 na Revista Uruguaya de Psicoanálisis, 92, 35-61, e em 2004 na Revista Brasileira de Psicanálise, 38, 521-540)
Cassorla, R. M. S. (2003). Estudo sobre a cena analítica e o conceito de “colocação em cena da dupla” (enactment). Revista Brasileira de Psicanálise, 37, 365-392.
Cassorla, R. M. S. (2004). Procedimentos, colocação em cena da dupla (enactment) e validação clínica em psicoterapia psicanalítica e psicanálise. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 25, 426-435.
Cassorla, R. M. S. (2005a). From bastion to enactment: The ‘non-dream’ in the theatre of analysis. International Journal of Psychoanalisis, 86, 699-719. (Trabalho também publicado

em 2006 em L’Année Psychanalytique Internationale, 4, 67-86, em 2007 na Revista Brasileira de Psicanálise, 41, 51-68, em 2008 em L’Annata Psicoanalitica Internazionale, 3, 75-94, e em 2010 na Revista de Psicoanálisis (Buenos Aires), 62, 137-161)
Cassorla, R. M. S. (2005b). Considerações sobre o sonho a dois e o não-sonho a dois no teatro da análise. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, 12, 527-552.

Cassorla, R. M. S. (2007). The analyst, his “Mourning and Melancholia”, analytical technique and enactment. In L. G. Fiorini, T. Bokanowsky, S. Lewkowicz (Eds.), On Freud’s “Mourning and Melancholia” (pp. 71-89). Londres: ipa Publications.

Cassorla, R. M. S. (2008a). The analyst’s implicit alpha-function, trauma and enactment in the analysis of borderline patients. International Journal of Psychoanalysis, 89, 161-180.

(Trabalho também publicado em 2009 na Internationale Psychoanalyse 2009, 4, 83-112, em 2010 no Livro Anual de Psicanálise, 24, 61-78, em 2009 no Libro anual de psicoanálisis 2009, 55-70, e em 2013 na Annata Psicoanalitica Internazionale, 6, 3-21.)

Cassorla, R. M. S. (2008b). Desvelando configurações emocionais da dupla analítica através de modelos inspirados no mito edípico. Revista Brasileira de Psicoterapia, 10, 37-48.
Cassorla, R. M. S. (2008c). O analista, seu paciente e a psicanálise contemporânea: considerações sobre indução múta, enactment e “não-sonho-a-dois”. Revista Latinoamericana de Psicoanálisis, 8, 189-208. (Trabalho também publicado em 2009 em Alter: Revista de Estudos Psicanalíticos (Brasília), 27, 19-40, e em 2011 na Rêverie-Revista de Psicanálise (Fortaleza), 4, 31-52)

JORNAL de PSICANÁLISE 46 (85), 183-198. 2013

Cassorla, R. M. S. (2009a). Reflexõs sobre não-sonhos a dois, enactment e função-alfa implícita do analista. Revista Brasileira de Psicanálise, 43, 91-120. (Versão reduzida in H. Levine & Brown, L. (2011), Growth and Turbulence in the Container and Contained (pp. 149-176).
Londres: Taylor Francis/Routledge)

Cassorla, R. M. S. (2009b). O analista, seu paciente adolescente e a psicanálise atual: sete reflexões. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, 16, 261-278.

Cassorla, R. M. S. (2012a). What happens before and after acute enactment? An exercise in clinical validation and broadening of hypothesis. International Journal of Psychoanalysis, 93, 53-89. (Trabalho também no prelo do Libro Anual de Psicoanálisis e do Livro Anual de Psicanálise)
Cassorla, R. M. S. (2012b). Transferindo aspectos inomináveis no campo analítico: uma aproximação didática. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, 19,61.

Cassorla, R. M. S. (2013a). In search of symbolization: the analyst task of dreaming. In H. evine, H.; G. S. Reed; D. Scarfone (Orgs.), Unrepresented states and the construction of meaning: clinical and theoretical contributions (pp. 202-219). Londres: Karnac.

Cassorla, R. M. S. (2013b). When the analyst becomes stupid. An attempt to understand enactment using Bion’s theory of thinking. Psychoanalytic Quarterly, 82, 323-360.

Cassorla, R. M. S. (no prelo). Em busca da simbolização: sonhando objetos bizarros e traumas iniciais. Revista Brasileira de Psicanálise.

Cassorla, R. M. S. (no prelo). The silent movies between George Bruns and Ellen. International Journal of Psychoanalysis.

Cassorla, R. M. S. (no prelo). O analista, seu paciente adolescente e a estupidez no campo analítico. Calibán-Revista Latinoamericana de Psicanálise.

Freud, S. (1969a). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In S. Freud, Edição standard

brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. O. de A. Abreu, trad., vol. 7, pp. 5-128). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)

Freud, S. (1969b). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. O. de A. Abreu, trad., vol. 12, pp. 193-207).

Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)

Greenacre, P. (1950). General problems of acting-out. Psychoanalytical Quarterly, 19, 455-467.

Joseph, B. (1989). Psychic equilibrium and psychic change: Selected papers of Betty Joseph (M. Feldman, E. B. Spillius (Eds.). Londres: Routledge.

Laplanche, J. & Pontalis, J. B. (1995). Vocabulário da Psicanálise. Santos: Martins Fontes.

Panel. (1999). Enactment: an open panel discussion. Journal Clinical Psychoanalysis, 8, 32-82.

Rosenfeld, H. (1987). Impasse and interpretation. Nova York: Tavistock.

Sapisochin, G. (2012). A escuta da regressão no processo analítico. Revista Brasileira de Psicanálise, 46 (3), 90-105.

Sapisochin, S. (2013). Second thoughts on Agieren: Listening the enacted. International Journal Psychoanalysis, 94 (5), 967-991.

Strachey, J. (1934). The nature of the therapeutic action of psycho-analysis. International Journal Psychoanalysis, 15, 127-159. (Republicado em 1950, 275-292)

Roosevelt M. S. Cassorla
Av. Francisco Glicério, 2331/24
13023-101 Campinas, SP
Tel: 19 3234-8414
rcassorla@uol.com.br

Roosevelt M. S. Cassorla

Professor titular – Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria – FCM – UNICAMP, Analista didata da SBPSP

PASSAGENS PEDEM PRESENÇA

“Faça uma lista dos grandes amigos
Quem você via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você não encontra mais…”
(Osvaldo Montenegro)

  28 de maio de 2022 vivemos no Núcleo de Psicanálise de Marília e Região um momento muito importante!

Voltemos um pouco…

Em março de 2020 foi decretado: todos isolados, a força brutal da vida e da morte se apresenta de modo real! Um golpe profundo em nosso eu! Parecia que a capacidade de sonhar havia sido extinta de nossas vidas, perdemos o
paladar, o olfato, o ar que respiramos, força da vida, ficou perigoso e raro, trazia com ele algo letal! Nossos medos mais arcaicos foram re-ativados. O cuidado com o outro era necessário, descobrimos nossa força destrutiva, mas,
também tivemos a oportunidade de sentir em tom maior nossa força amorosa. O medo de enlouquecer e cair no vazio psíquico nos assolava.

No início de maio de 2022, nossa querida colega, Cássia Teixeira Assef, nos faz um convite. “Quero presença, de corpo e alma, na apresentação do meu relatório”! Assim voltamos a sentir sentimentos antigos, guardados em nós,
aguardando a hora de voltar para o presencial. Sentimentos que um abraço, um aroma, um olhar ao vivo, há muito tempo não experimentávamos.

A jornada para o vir-a-ser um psicanalista é longa, árdua, cheia de flores e espinhos. A passagem é sempre brindada entre grandes amigos que fazemos ao longo dessa caminhada. Havíamos perdido isso, o ritual de passagem
acontecia virtualmente, mas, não tinha o mesmo sabor, a mesma cor, as sensações ficavam prejudicadas pela falta de corpo.

Neste encontro, alguns de máscara, outros sem máscara, cada um voltando à vida de um modo muito singular, mas algo ali era comum a todos. O olhar, que não estava ofuscado pelas lentes de uma câmera, olhares vivos, vibrantes, que comprovava, estamos vivos, pulsão de vida sobrepujando pulsão de morte!

Foi inevitável sentir a ausência dos que tanto sonharam com essa volta, mas a força da natureza humana não os permitiu estar lá, presentes concretamente, a morte foi soberana! Nosso querido José Antônio Pavan que sonhou concretizar um espaço para a “Sede no Núcleo” deixou para nós a base, a fundação! Agora nos resta levantar paredes que possam conter esse sonho tão sonhado. As ausências foram presença viva neste encontro.

Dr. Alfredo Colucci, representante de todos os pioneiros, com sua habitual generosidade trouxe sua presença marcante, conduzindo-nos ao caminho da fé e esperança, reacendendo em nós uma chama para a vida psicanalítica.

O Núcleo, um lugar que alberga nossos sonhos de vir a ser psicanalistas, lugar de muitas lutas e conquistas, neste dia 28 de maio de 2022, nos acolheu em seu berço para receber uma analista, que nos apresentou um trabalho primoroso, cheio de vida e de verdades, que nos impulsiona a seguir confiantes de que um(a) analista é aquele(a) que sem medo vive um encontro de almas, correndo riscos, se embrenhando por lugares nunca visitados em nós e em nossos analisandos.

Uma data memorável, que venham outros encontros de corpo e alma!!

Maria Inês Alves

Membra filiada da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e membra agregada do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região.

Resumo: A Psicanálise diante do racismo: um olhar sobre o racismo sofrido pela população negra no Brasil

Evaldo Ferreira da Silva

No final de 2021, o Curso de Formação em Psicoterapia Psicanalítica formou o aluno Evaldo Ferreira da Silva, que desenvolveu uma pesquisa bibliográfica sobre o racismo sofrido pela população negra no Brasil, sob orientação da professora Vânia Maria  Martins Lopes. A seguir, conferimos um breve resumo de seu trabalho.

No Brasil, o racismo está presente no nosso cotidiano. Ele não é assumido socialmente, mas é aceito e há silêncios a respeito, decorrentes de razões distintas ou até contraditórias. Esses silêncios, quando não fortalecem o racismo, o mantém, pois resultam no não enfrentamento. E diante de lamentáveis episódios de racismo noticiados ou  presenciados, pouco ou quase nada vemos no sentido da mobilização da sociedade e das instituições. Temos, por vezes, comoção, entretanto  em geral estas  não chegam a romper o imobilismo, assim se perdem, se esvaziam, sendo pouco ou nada valorizadas num eventual e possível processo de desconstrução de preconceitos raciais enraizados.

Almeida (2019) compreende o racismo como ideologia que molda o inconsciente. Assim, independe de uma ação consciente para existir, já que ele é estrutural, abrangendo economia, política e subjetividade. No senso comum é frequente interpretações equivocadas  sobre racismo,  sendo também frequente, vítimas de racismo não serem compreendidas nas suas queixas e suas dores.  Discorremos a seguir sobre três concepções de racismo as quais Ameida (2019) traz  distinções.

Individualista: É a mais corriqueira, e para quem assim o concebe, entende o racismo como um ato, que está sempre vinculado ao ato, deliberadamente, desse modo é resultado de uma ação de um indivíduo, ou de grupos de indivíduos. Na concepção individualista, o racismo é uma anormalidade.

Institucional: Não se manifesta apenas a partir de atos individuais. Basta apenas não tomar ações necessárias para coibir, como por exemplos o silenciamento, salário menor para o homem negro, e menor ainda para a mulher negra, pois as instituições nos seus modos de funcionamentos criam condições para que isso ocorra e  permaneça.

Estrutural: É estrutural porque integra a organização econômica e política da sociedade de forma inescapável, fornecendo assim o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas  de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea. É então uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional, pois os comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção.  O racismo não é só violência, ele forma os indivíduos, as instituições, cria cenários, com atores e papeis outorgados. Assim o racismo  não é uma anormalidade, exceção, mas algo que se constitui enquanto um parâmetro normalizado nas relações. Diante disso, ocorre uma acomodação, naturalizamos e aceitamos os papeis socialmente   construídos.  Para Schucman (2008) o racismo é estrutural e estruturante da subjetividade, pois o branco tendo se colocado à parte das questões raciais, ficou como um padrão universal de norma e normalidade, ocorrendo inclusive, o que Bento (2002) denominou de pactos narcísicos da branquitude, por isso haver entre outras coisas,  negação da problemática do racismo, alianças inconscientes intergrupais,  manutenção do poder e privilégios brancos.

Diante de toda a complexidade do que é o racismo, para ser antirracista é necessário um conhecimento sobre racismo e é fundamental perguntar-se. O que tem de racista em mim? Para assim reconhecer e ser possível uma mudança, uma transformação, segundo Paim (2020), sendo necessário para isto, olhar a branquitude por um viés crítico. A pesquisadora Lia Vainer Schucman, traz em seu trabalho “Teorias críticas da branquitude”  uma descrição    a respeito da brancura construída socialmente, como um lugar de poder e privilégios, citando entre outros autores,  RAMOS (1957) “A patologia do branco brasileiro”, compreendendo como uma patologia, o que fora acontecendo historicamente, de o branco estudar o negro como objeto negro, devido à construção social de que ele branco é universal, e os demais têm raça.

Pesquisamos na Revista Brasileira de Psicanálise, no período de 2009 a 2021 (disponível no site da FEBRAPSI), os artigos publicados sobre, cujo resultado discorremos a seguir, de  maneira a ilustrar bem:  Em 2009,     2010, 2011 e 2012, não houve nenhum artigo publicado pela Revista Brasileira de Psicanálise. Em 2013 houve um. Em 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018, novamente não houve nenhum. Em 2019 houve um. Em 2020 foram três. Uma observação: além desse resultado, encontramos também um artigo não sobre sobre racismo, mas sobre adoção inter-racial. A pouca quantidade de artigos publicados, bem como os hiatos entre eles nos fez pensar e nos perguntarmos: se o racismo permeia e rege relações huamanas no nosso cotidiano, se temos episódios e mais episódios de racismo, e desdobramentos  como, mortes, adoecimentos, injustiças de todas as ordens, exclusões, incompreensões, violências, traumas psíquicos e físicos… por quê o racismo não tem sido objeto de interesse para estudo, no âmbito psicanalítco? Por quê os silêncios? Ainda que atualmente percebe-se alguma mudança, há muito o que avançar, pois “ sendo poucos os trabalhos, são menos ainda, os com especificidades” Paim (2020).  Curiosamente, a primeira tese de mestrado no Brasil a abordar sobre o racismo é de Virgínia Bicudo, cuja tese só foi publicada 65 anos mais tarde e, apesar de todo o seu pioneirismo, importância e contribuições para a Psicanálise no Brasil, e de muito ter contribuído para difundí-la, Virgínia sofreu uma invisibilidade, segundo Pereira (2018),  não tendo havido uma valorização de suas produções dentro da bibliografia psicanalítica acadêmica, o que Conceição (2020), chamou de apagamento da história, por causa do racismo e machismo existentes na nossa sociedade.

Este trabalho nos possibilitou caminhar para um letramento racial, uma alfabetização  sobre racismo, de modo que conseguimos aprender sobre  o que é o racismo estrutural, que ele estrutura nossa subjetividade, e ter podido caminhar para ter  consciência racial  fica evidente que “o racismo ocorre porque o branco precisa do negro  como depositário” Paim (2020),  que os psicanalistas brancos, precisam dar conta disso primeiro em si, para num segundo momento dar conta disso no outro,  que a branquitude como um lugar de poder traz privilégios, que geralmente as conquistas são  compreendidas apenas como uma questão de mérito, e não de uma sociedade que privilegia o branco e exclui o negro, e que portanto numa sociedade racista, não há democracia. 

O trabalho completo pode ser consultado na Biblioteca “Alfredo Menotti Colucci” do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região. Agende sua visita! Para mais informações: biblionpmr@gmail.com ou (14) 3413-3307 – (14) 99614-6782.

 

SILVA, Evaldo Ferreira. A Psicanálise diante do racismo: um olhar sobre o racismo sofrido pela população negra no Brasil. 2021. Monografia (Especialização) – Curso de Formação em Psicoterapia Psicanalítica, Núcleo de Psicanálise de Marília e Região, Marília, 2021.

Vocês podem ver também sobre o tema na biblioteca em:

PAIM FILHO, I. A. Racismo: por uma psicanálise implicada. Porto Alegre: Artes & Ecos. 2021, 79p.

Evaldo Ferreira da Silva – CRP 06/136087

Psicólogo pela FAP – Tupã – SP
Formação em Psicoterapia Psicanalítica pelo NPMR
Membro agregado do NPMR

Um olhar que toca

Anete Maria Francisco*

Olhares
Que tocam
Que falam
Que eternizam.
Vejo meus olhos
Nos seus olhos!

É assim, nesse primeiro olhar que o bebê começa seu desenvolvimento psíquico. Como nos diz Winnicott (1971), para que este pequeno ser possa nascer psiquicamente e possa “se ver” precisa primeiro “ser visto”.

E é a mãe que oferece esse primeiro olhar ao seu bebê. Não apenas vê-lo como ao chegar em seus braços pela primeira vez: “que lindo você é meu filho!”, mas um olhar que embala, que aconchega, que supre suas necessidades.

Chegastes tão pequenino
Nesse mundo imenso
Buscando alegria e peito
Para um dia crescer
E correr o mundo!

A mãe é o primeiro vínculo do bebê com o mundo externo. É essa relação da mãe com seu bebê, esse primeiro vínculo, que possibilita que ele vivencie novas relações ao longo de seu caminhar na vida,    de um estágio de dependência absoluta, passando pela dependência relativa rumo a uma independência relativa. Relativa porque é na relação com o outro que nos constituímos como sujeitos que somos.

Para que isso ocorra é fundamental um ambiente facilitador que permita a esse bebê amadurecer e se desenvolver.

A mãe “suficientemente boa” é aquela capaz de reconhecer e atender as necessidades de seu bebê em tal estado de identificação com ele que experimenta uma devoção ímpar.

O bebê necessita desses primeiros cuidados intensivos devido ao seu estado de dependência absoluta e é afetado pelo tipo de cuidado que recebe ao ser acariciado, ao ser trocado, ao ser amamentado, ao ser limpo, ao ser visto. Essa é a capacidade da mãe de “sonhar” o “sonho” de seu bebê, segundo Bion (1962), captando o que se passa com ele mais pela intuição do que pelos sentidos.

Um choro pode ser apenas fome, mas pode ser um pedido para ser visto, para ser embalado. Ter a capacidade e a tolerância para aguentar este estado inicial com seu bebê, faz a mãe “suficientemente boa” criar este ambiente facilitador que consiga dar contorno e amparo para o bebê.

Ao embalar, ao amamentar, ao cuidar do bebê, a mãe o ampara e o protege, pode ir “contendo” aquele pequenino ser para que ele possa vir a ser no mundo.

Um olhar de ternura
Um olhar de medo
Um olhar de “vou dar conta?”
Um olhar de persistência
A procura de novos caminhos…
Um olhar que acalma
Um olhar que cuida
Um olhar que tolera
Um olhar que vê o outro.

Referências:
Bion, W. (1962). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
Dias, E. O. (2017). A teoria do amadurecimento de D.W. Winnicott. 4ª edição, São Paulo: DWW Editorial.

Haudenschild, T. R. L. (2015). O primeiro olhar. Desenvolvimento psíquico inicial, déficit e autismo. São Paulo: Escuta.

Winnicott, S. W. (1971). O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Anete Maria Francisco / CRP 06/129513

Psicóloga pela Unimar
Formação em Psicoterapia Psicanalítica pelo NPMR
Membro agregado do NPMR
Auxiliar do Serviço de Orientação e Encaminhamento do NPMR

Resumo: Autismo: um olhar da Psiquiatria à Psicanálise

No final de 2021, o Curso de Formação em Psicoterapia Psicanalítica formou a aluna Silvia Cristina Correia Ribeiro que desenvolveu uma pesquisa bibliográfica acerca do autismo sob a ótica da Psiquiatria e da Psicanálise sob orientação da professora Rosa Maria Batista Dantas. A seguir, conferimos um resumo de seu trabalho.

Várias são as discussões sobre as definições apresentadas para a  compreensão do autismo, tais como os aspectos genéticos, biológicos, relacionais, ambientais, culturais; Enfim, trata-se de considerar possibilidades multicausais para as origens do Transtorno Espectro Autista (TEA). Algumas publicações referentes à psicanálise sobre o que leva ao autismo causa grandes discussões acerca de hipóteses explicativas sobre esse transtorno que em alguns momentos engloba a questão da falha do circuito pulsional, a falha na alienação com o outro e não instauração do registro simbólico, entretanto, percebemos que não há uma única explicação a respeito do autismo. O que identificamos em comum entre elas é a existência de alguma falha ou de algo que não se efetiva na constituição psíquica da pessoa autista, porém há a observação de  uma causalidade significante produzida pela linguagem.

Na definição do conceito do autismo pela psiquiatria realizada pelo guia de classificação diagnóstica de transtornos, o último Manual de Saúde Mental (DSM 5), passou a integrar todos os transtornos do neurodesenvolvimento, fundindo-se em uma única classificação, o Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Para psiquiatria as características essenciais do transtorno do espectro autista são prejuízos persistentes na comunicação social recíproca e na interação social e padrões restritos de comportamento. O estágio em que o período funcional fica evidente irá variar de acordo com as características do individuo e de seu ambiente.

Os déficits na reciprocidade socioemocional estão claramente evidentes em crianças pequenas com transtorno, que podem apresentar pequena ou nenhuma capacidade de iniciar interações sociais e de compartilhar emoções, caso tenha linguagem, costuma ser unilateral, sem reciprocidade social, usada mais para solicitar ou rotular do que para comentar, compartilhar sentimentos ou conversar.

Pelo olhar da psicanálise há alguns conhecimentos sobre o autismo.

Para Francis Tustin “os fenômenos autísticos caracterizam-se pela presença de um estado de “recolhimento emocional” no interior de uma concha protetora, autogerada. O self retira-se do contato afetivo com o objeto com o intuito de evitar vivências dolorosas que lhe acarretariam uma sensação de desagregação e vulnerabilidade intoleráveis. Os estados autísticos manifestam-se principalmente em indivíduos que apresentam sensibilidade extrema e uma autossensualidade exacerbada. Para tais indivíduos, a consciência da separação do objeto deu-se de maneira abrupta, sem que tivessem recursos para suportá-la. Essa separação seria vivida como se parte de seu próprio corpo tivessem sido arrancadas, acarretando experiências de aniquilamento, de buracos internos, de buracos negros.”

No entanto, Melanie Klein explicava o autismo levando em conta a inibição do desenvolvimento constitucional do bebê, o qual em combinação com as defesas primitivas levava a uma inibição do desenvolvimento do ego, a uma pobreza de vocabulário e também a uma dificuldade para realizações intelectuais, não apresentação de sinal de adaptação à realidade, nem de estabelecimento de relações emocionais com o ambiente, não expressão de afeto, não há reconhecimento nenhum do outro e raramente algum tipo de ansiedade. Apresentam movimentos descoordenados, expressões de olhos e rosto fixos. Essas crianças apresentam um fracasso das etapas iniciais dificultando a formação de símbolos, tornando-as imobilizadas, isoladas, sem relação com a realidade.

Ao pesquisar o DSMs, pode-se verificar que as classificações descritas nos manuais diagnósticos, constituem-se, no nível da fenomenologia, naquilo que se observa dos chamados sintomas, dentro do modelo médico.

A psicanálise vê o autismo como uma forma de estar no mundo, é um espectro no qual encontramos diversos graus que variam de leve, moderados e graves, considerando que os autistas têm dificuldades importantes em lidar com o mundo, seja no sentido amplo ou estrito e que suas famílias estão completamente envolvidas nestas dificuldades. São crianças que precisam de ajuda para saírem de seus mundos fechados, de sua concha protetora e encontrarem soluções próprias para estabelecerem algum nível de relação com o exterior. Alguns desses pacientes que apresentam estados autísticos comunicam–se predominantemente de forma não verbal, sobretudo da autossensualidade.

O trabalho completo pode ser consultado na Biblioteca “Alfredo Menotti Colucci” do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região. Agende sua visita! Para mais informações: biblionpmr@gmail.com ou (14) 3413-3307 – (14) 99614-6782.

 

RIBEIRO, Silvia Cristina Correia. Autismo: um olhar da psiquiatria à psicanálise. 2021. 25 f. Monografia (Especialização) – Curso de Formação em Psicoterapia Psicanalítica, Núcleo de Psicanálise de Marília e Região, Marília, 2021.

Silvia Cristina Correia Ribeiro CRP 06/ 103686

Psicóloga pela Fadap – FAP
Formação em Psicoterapia Psicanalítica NPMR
Membro Agregado NPMR
Psicóloga Clínica

Crônicas de Rubem Braga e Machado de Assis

Um braço de mulher – Crônica de Rubem Braga

Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que “nós não podemos descer!”. O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora.

Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar. Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior eficiência na sua luta contra a morte.

Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora. Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem — “o senhor” — ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e co-piloto e vários homens no avião. Mas eu era o homem ao lado, o homem visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção.

Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo.

Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela se deixasse matar sem reagir.

A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim. Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida.

O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem.

Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do nevoeiro. Como a senhora não me desse mais trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e fraco assunto.

E de repente me veio a ideia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro – e de que eu podia morrer.

Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte.

Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre.

Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar; que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro.

A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer arrebentado e retorcido. A senhora estendeu o braço direito, segurando 0 encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.

Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a ideia da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça.

Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas. Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse afinal a tomar alguma providência.

Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no mundo.

No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa. “Ora, não senhor.” Ele se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho – que devia permanecer um estranho.

Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.

Quando se retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.

Uns Braços – de Machado de Assis

Fonte: ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II. Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Uns Braços

INÁCIO ESTREMECEU, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco. — Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco! — Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos..

Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura! D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens. Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870. Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado. Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.

Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil cousas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga. Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dous, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, — ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória. — Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.

Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.

“Deixe estar, — pensou ele um dia — fujo daqui e não volto mais.” Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços. Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma cousa Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.

— Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.
— Não tenho nada.
— Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos . . .
E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redargüia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: — vadio, e o covado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.

D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realrnente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer. Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposção, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das cousas.

Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

— Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias. Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavamlhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.

D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.

A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.

Um domingo, — nunca ele esqueceu esse domingo, — estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d’água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal. Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços. É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas.

Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal. Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude. D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela.

Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dous, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. “Uma criança!” disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos. “Uma criança!” E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, — dormir e talvez sonhar. Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse.

Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinavase, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca. Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na idéia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deulhe um calefrio. Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:

— Quando precisar de mim para alguma cousa, procure-me.
— Sim, senhor. A Sra. D. Severina. . .
— Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela. Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente. . .

Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algurn olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era outra cousa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos… Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana: E foi um sonho! um simples sonho!

Precisa de ajuda?